os finais nem sempre acabam

"Se não gostar mais de mim

não me responda nada

não me diga nada

não quero que fiquem gravadas

as palavras do não querer.

Se ninguém gostar mais de mim

ninguém precisa saber

nem eu.

Se não gostar mais de mim

seja breve seja leve seja zen

silêncio de ioga de Sidartha.

Mas se ainda sonhar comigo,

por favor, meu amor,

devolva essa carta." - (Elisa Lucinda, in Vozes Guardadas. Editora Record. 1ª ed. Rio de Janeiro. 2016)

Te amar é me abandonar, isso eu já aceitei. O que eu não concebi foi como uma coisa perdura, expande e existe por ainda tanto tempo. Um acidente nuclear. Aprendi na escola que demorava pra deixar de existir os resquícios de radiação, décadas, séculos a depender do elemento. Chamam de “meia-vida”. O problema (ou a maravilha), é que o amor não tem meia vida, é sempre vida por inteira

É sempre o vir a ser.

Comprei um livro esses dias, já antigo, folhas amareladas. Assim que abro cai de dentro um recorte de jornal, uma promoção. “Ligue voando para viajar de graça”. Você preenche, responde algumas perguntas e, se ganhar, tem uma viagem de graça de avião: Miami.

Pois, o mais estranho disso é que o recorte estava preenchido, a pessoa respondeu, mas não enviou, deixou aquilo inerte dentro de um livro por quase, sei lá, trinta anos?

Minha imaginação zuniu perambulante, passou cortante. Porque? Será que a pessoa não achava mesmo que ganharia, não tinha ninguém a quem chamar de acompanhante e ir junto, será que, justo no dia em que ia postar o envelope no correio, aconteceu alguma coisa…ou, ou só, sei lá, a mais lógica e fina das desculpas: Esqueceu.

(A navalha de Ockham é mesmo contra as narrativas, contra as inventações.)

Aliás, que mal educado eu, já começo a escrever assim, sem mais nem menos, sem oi.

Oi, tudo bem?

Pois, a vida é cheia de obrigatórios inícios, não? Já do contrário, os finais nem sempre acabam, ficam suspensos. A coisa do recorte de jornal, por exemplo, não teve terminação, começou, mas não acabou. Decolou, mas sem pousar.

Tô escrevendo pra saber como você tá, como estamos. Moro dentro ainda da casca do seu coração, uma concha-caramujo-homem, uma mensagem na garrafa.

Sabe que eu lembrei de você?

Li essa frase e fiquei olho brilhante, foi assim:

“Lar não é onde você nasce,

é onde cessam

todas as tentativas de fuga”

(de Naguib Mahfouz)

Estamos sempre a espera, fugir constante, mas eu espero, espero poder alguma vez daqui a trinta anos ser um recorte dormido, empoeirado, encontrado no meio de um livro seu. Você vai abrir e encontrar essa carta, e vai ler, e vai lembrar. E se até lá, já não mais gostar mais de mim, se não me amar, não precisa mesmo responder, mas...

"se ainda sonhar comigo,

por favor, meu amor,

devolva essa carta."