De um cupido desiludido
Escrevo essa missiva a Divindade Maior do Olimpo,
pedindo que aceite meu arco e flechas e me retire dessa missão,
pois há algum tempo desci ao mundo dos seres humanos em seu nome,
minha missão era fazê-los encontrar pessoas com quem compartilhar
vidas, sentimentos, sonhos, aventuras, aprendizados, amadurecimento,
e sei que errei muitas vezes minhas flechas e causei muitos desencontros,
porém fiz uma descoberta fundamental sobre os humanos:
eles dizem querer alguém que seja a cara metade, a chama/ alma gêmea,
uma pessoa fiel, que ofereça cuidados, segurança, amor, paixão, desejo, cumplicidade,
mas todas as vezes que flechei as pessoas certas, atendendo todas as expectativas,
o que vi foi demasiado assustador e contraditório em todo o discurso apregoado,
vi que enquanto um lado ofertava tudo isso o outro se acomodava e nada fazia,
sem esforço, sem retribuição, uma via de mão única, uma indiferença abissal,
o "venha a nós", sem reciprocidade, deixando-se ser mais amado e amando menos,
e ao final, pasmem, as pessoas que pediram tanto por tudo isso desfaziam os enlaces,
voltando ao círculo vicioso daqueles que as magoavam constantemente, sem nada de valor,
puro masoquismo e falta de amor próprio a contentarem-se com menos, sofrerem e aceitarem,
e foi aí que eu entendi que o amor que realmente desejam é o que não podem conseguir,
é o que lhes é negado ou maltratado, o que lhes traz enganos, traições, agressões,
é nesse tipo de relacionamento que incorrem em um comportamento repetitivo,
desejam ser salvadores de desastres caóticos sem quaisquer soluções,
desejam viver ilusões de uma melhoria que jamais acontecerá e sabem disso,
desejam estar em uma eterna luta contra dores físicas e da alma,
desejam lágrimas e vitimizações, porque afinal, procuram e acham o desprezo,
e é isso que lhes oferece uma estranha realização cheia de dopamina e certa completude,
o lado ruim da fantasiosa ilusão de que o amor não se pode viver sem dor,
e com isso destroem-se mutuamente por tempos e gerações forjadas nessa tendência,
sim, é extremamente insano e angustiante ver seres humanos agirem contra si mesmos,
e destruírem também os sentimentos daqueles poucos ainda disponíveis a sensibilidade,
por isso, diante desse quadro sem retorno, sem esperança e de tamanha insensatez,
peço demissão sumária e irrevogável de minhas funções junto a esse rebanho incompreensível,
se eles querem viver enlutados no assassínio de suas próprias felicidades,
não serei eu como cupido que irei conseguir reverter essa situação,
eles que sigam assim até o extermínio final,
já eu canto para subir e estar bem longe dessa hecatombe.