Rascunho de uma carta ao pai
Pai,
Desde a sua partida não conversamos. Em maio deste ano fez 5 anos. Nunca fomos próximos o suficiente para falarmos abertamente de sentimentos como a saudade ou o amor. Porém hoje gostaria de ter aquela conversa de pai pra filho, sabe? Te atualizar sobre a vida sem você aqui.
Pai, cumpro o meu dever como seu filho homem. Mas não é fácil. Na semana que sua luz apagou, quando retornava do trabalho, decidi entrar no bar quando vi seus amigos de pé no balcão. Decidido a agradecer a presença de todos no seu enterro fui até eles e meio sem jeito comecei a falar quando fui interrompido pelo M... que da ponta do balcão gritou pra mim "Dou 20 mil na sua banca!". Fiquei sem ação enquanto os demais se entreolhavam, alguns olharam pra baixo e outros pra cima. Não foi difícil perceber no rosto daquela gente toda o constrangimento. Mal... é um dos que se diziam "amigo". Naquele momento infeliz para uma oferta de negócio ficou claro o tipo de amizade. O senhor diria para eu não me importar, mas recentemente descobri que ele sabe que fiquei chateado pela oferta em hora inapropriada. Cinco anos pai. Ele sabe que me senti ofendido, mas nunca se deu o trabalho de pedir desculpas pela falta de sensibilidade daquele dia.
Não vendi e não pretendo vender.
Ao invés disso investi tudo naquele negócio. Quase me afundei financeiramente pra levantar ele, fora o tempo que passei a empregar ali. Acredito que no primeiro ano não tenha sido menos de 12 horas de trabalho por dia. As vezes saia quase de manhã para na manhã está de volta. Foi muito duro. Mas tive ajuda da minha irmã e da minha mãe. A primeira ajudou financeiramente e com trabalho, aliás ela assumiu a responsabilidade antes de mim que em choque não consegui lidar com a realidade que se apresentava, mas foi pelo exemplo dela que eu me ergui e assumi a frente; a segunda, apenas financeiramente. O senhor sempre manteve minha mãe longe dessa realidade, eu também a mantive longe.
Infelizmente as coisas entre eu e a sua nora não deram muito certo. Eu não imaginava que aquele trabalho me tomasse tanto tempo, mas tomou. Fazendo-me cada vez mais distante dela a rotina de trabalho iniciou um desgaste muito grande em nós. Mas não foi culpa dela pai. No medo de fracassar me afundei no trabalho. Não tinha mais tempo pra ela, pra minha mãe ou minha irmã. Me distanciei de tudo para forcar só naquilo. Boa parte de mim se arrepende muito de ter agido assim. Mas naquela época parecia o certo a fazer. Hoje, olhando pra trás, vejo que também errei. Pago pelo erro com a solidão e a tristeza que carrego na alma. Ninguém foi melhor que a Andréia, pai, e eu vivo ela dentro de mim como uma grande perda na minha vida.
Há umas três semanas conheci uma senhora. Na conversa ela disse que foi casada com um capricorniano, como eu, e que ele vivia para o trabalho, como eu. Curiosa ela perguntou se eu já tinha me envolvido com uma canceriana. Respondi que só uma vez já imaginando onde ela ia chegar. "Com certeza essa é a mulher que mais te marcou" ela disse com firmeza e convicção que me fizeram ficar sem resposta. Falei então que estava namorando uma capricorniana e ela cortou-me reafirmando "não faz diferença, a que te marcou foi a canceriana e você nunca vai sentir por outra o que sente por ela" e concluiu "nenhum homem capricorniano supera a mulher canceriana".
Foi a primeira vez que ouvi de alguém a mesma voz que parece falar dentro de mim. Claro, para o senhor essa coisa de signo é bobagem, e talvez seja mesmo, mas falando por signos ela colocou pra fora algo de dentro de mim. Aquelas palavras reacenderam um sentimento que venho reprimindo há muito tempo.
As vezes quero procurá-la, pedir perdão por ter sido idiota e distante. Tentar consertar as coisas entre a gente. Mas acredito que isso só trará mais dor. Hoje ela está buscando a felicidade que eu não posso oferecer.
Então, de volta ao começo.
O dia a dia ficou mais cansativo. Percebi a necessidade de trabalhar mais, repaginar o negócio torcendo para que as coisas melhorassem. Foram necessários três anos para equilibrar as contas. Minha mãe e irmã já não tinham de onde tirar dinheiro e ficou nas minhas mãos a responsabilidade de salva-lo. A partir daquele momento seria tudo somente na base da gestão.
Contratei uma pessoa. Dividi o peso. Minha irmã ainda ajuda mas precisa focar no trabalho e na formação. Ela hoje está no doutorado! Naquela época ainda era mestrado. Ela me ajudou muito pai e quando fiquei doente ela assumiu tudo sozinha. O senhor deve ter muito orgulho dela.
Mas quando as coisas pareciam se encaixar os ventos mudaram de direção.
Me distanciei também dos amigos. Acho que me distanciei de tudo de certa forma. Trabalhar de dia e a noite é muito puxado.
Boa parte do dinheiro que levanto vem do turno da noite. Minha irmã vinha ajudando trabalhando na sexta ou sábado para que eu pudesse ter um desses dias pra mim. Eu gostava dessa ajuda, mas sinceramente, no fundo, nunca aprovei. Para um homem trabalhar na noite é uma coisa, uma mulher sozinha e cercada por gente bêbada? Não tinha como dar certo e acabou não dando.
Dois homens apareceram na área. Estavam bebendo próximo da banca quando uma mulher jovem passou por eles e parando na frente da minha irmã pediu para ela ter atenção porque aqueles dois já tinham estuprado uma mulher dentro da boate. Aquilo deixou minha irmã preocupada. Na mesma noite passou um conhecido nosso pelos dois rapazes que, desconfiado, perguntou o que eles estavam fazendo ali. Disseram que estavam decidindo quem iria "pegar" minha irmã.
Preocupada ela me contou o que tinha acontecido no dia seguinte que esse conhecido assustou os dois ameaçando eles ao dizer que se algo acontecesse a ela não faltaria quem desse um jeito nos dois - o lado bom de ser conhecido na área.
Passou um tempo e numa noite aparentemente normal eles voltaram. Dessa vez diante da minha irmã que assustada ficou dentro da banca, atitude que chamou atenção do Beto, o bombeiro, que acostumado a ver minha irmã sempre do lado de fora estranhou ela não sair. Perguntou se estava tudo bem e ela respondeu que sim mas, em tom bem humorado e para disfarçar a preocupação complementou que de qualquer forma era bom ele ficar por perto. Os rapazes perguntaram se as câmeras de segurança do bar em frente a banca funcionavam. Ela disse sim, sabendo que isso não era verdade.
Então numa manhã ao acordar eu a encontrei sentada toda encolhida no sofá. Perguntei o que havia e ela apenas me disse que não queria mais trabalhar a noite. Eu nunca quis ela naquela horário então não fiz objeção. Mas ela se colocou a disposição para eu folgar. Hoje essa folga é as quartas.
Só que minha irmã está doente. Emagreceu muito. Continua trabalhando e estudando, mas está com uma gastrite que tem atrapalhado muito sua vida. Sempre tem crises de dor. Mas não baixa a cabeça. Ela não pára. É de admirar. Ela sente a sua falta e extravasa isso do jeito dela. Todos extravasamos de alguma maneira.
Sua ausência é sentida por todos nós. Mas acredito seja minha mãe a que mais sente.
Ela está doente. Desenvolveu um tipo de demência. Além dos remédios para tratar essa e outras doenças como a depressão ela precisa também de terapia. Esquece de coisas bobas. Teme que isso vire Alzheimer apesar do médico já ter descartado essa hipótese. Ela está muito triste.
Foi um processo doloroso para todos. A vida não parou depois da sua partida. As coisas que tinham que acontecer estavam acontecendo e nada ou talvez pouco pudéssemos fazer.
Se eu tivesse cuidado mais de mim não teria entrado em coma diabético. Não teria dado um enorme susto na minha família que por pouco não enterra o filho pouco depois do pai.
Fui irresponsável por várias razões, a principal dela é porque estava no meu limite. Não sou de drogas mas era da comida. Comia porque estava triste, feliz ou sem razão para comer. Troquei água por refrigerante, comida por lanche... enfim. Hoje tomo remédio para diabetes tipo 2. Está tudo sob controle e logo estarei na academia para cuidar da estética e do bem estar porque só remédio para depressão é pouco. Até pouco tempo estava num namoro temporário. Conheci uma artista maranhanse que estava de passagem pela cidade. De tanto fazermos companhia um ao outro nasceu um interesse entre nós.
Namoro temporário porque ela não ficaria aqui por muito tempo. Foi bom ter alguém. Com as regras da relação bem estabelecidas foi fácil e até gostoso ter uma válvula de escape a toda essa rotina de trabalho. Não me apaixonei por ela. Mas gostava de tê-la por perto. Em setembro ela se mudou para Búzios porque aqui na cidade não está fácil trabalhar.
Lá ela até já conseguiu uma banda.
A sua ausência nos ensinou muito sobre tudo, principalmente sobre nós mesmos.
Espero que o senhor esteja pelo menos um pouco orgulhoso do que fiz por aqui. Por enquanto só tenho a apresentar o trabalho, logo espero estar com novidades boas sobre mim mesmo.
Até a próxima carta, pai.