hoje

Hoje eu senti sua falta. Ontem já havia o sentido e sei que nos dias anteriores também. É que a igualdade do dia-a-dia está no mais louvável privilégio da vida: sua condescendência. Você sabe que a graça dela está em sua bondade comigo, e que por bondade eu defino constância. É assim que as coisas são pra mim: precisas, diretas e constantes. Assim sei que o amanhã será como o hoje, e por hoje já ter sido ontem, não há nada de novo. E nessa rotina de ontens, hojes e amanhãs, eu ainda sinto saudade.

É que hoje a lua foi tão bonita que eu a vi por conta própria. Pela primeira vez não precisei que alguém me pedisse pra olhar pra cima e quem sabe por isso, digo que mesmo em sua beleza não resplandecia tanto quanto antes. É que antes ela não cintilava sozinha, as estrelas brilhavam vivas e eu sentia o sopro de vento frio como um abraço pueril que me dizia que o ontem bondoso também seria bom comigo amanhã. Mas hoje não. Especialmente hoje a lua estava mais bonita que o normal, mas eu torcia para que amanhecesse logo.

Eu não sei dizer como, mas acho que pela primeira vez na vida eu senti que o vazio que me parasita estava maior e que esse infinito me engoliria por inteiro. É que desde sempre eu estive no limbo, e por estar no esquecimento eu rezava. Rezava pedindo para que me aplacassem os sentidos, me trouxessem algo de novo ou, quem sabe, apenas tivessem misericórdia. Mas é que eu nunca fui de me rebelar tanto e quem sabe pelo bom comportamento meu vazio virou rotina e eu passei a amá-lo como ontem. Exceto por hoje. Hoje, a substância que me forma se fez rarefeita. Tão sutil que me faltava o ar, tão inóspita que me fazia chorar, tão cruel que desse vazio me fez.

Hoje ainda eu senti dor. Não a dor da qual já me curava, mas uma dor visceral, um sofrimento físico. Senti que me esmagavam os ossos e apertavam o pulmão, que me me enviezavam a garganta e reviraram o estômago. Senti que a esperança que me remediava não passava de um placebo e que me enganar dizendo que você voltaria era uma forma de dizer que eu mesma não havia voltado. Senti que era capaz de morrer aqui mesmo, trancada num quarto, fingindo que não havia mais nada lá fora. Senti que o amanhã seria diferente de ontem e isso me tornaria alvo num conflito injusto. Me senti desamparada.

E bom, hoje eu me senti sozinha. Parecia que ainda aqui poderia morrer e ficar por dias a fio antes que me encontrassem decomposta. Na verdade, já me sentia assim há tempos: em decomposição. Mas creio que já entendera que isso é normal pra mim e que esse estado não é lá tão ruim. Me fragmentar significava que estava inteira, e por não me sentir assim nunca, era bom fingir que era verdade. Acho que esse sempre foi o meu maior medo: morrer só. Pensar que o amanhã pode não ser um hoje me deprime, e sentir que não fiz o suficiente nos ontens pra que neste momento estivesse alguém segurando minha mão me apavora. Quem sabe numa realidade paralela esse alguém não teria sido você?

É que hoje me fez invejar ontem. Me fez desejar voltar aos dias em que não pensava o que agora penso e não estava no estado em que agora estou. Acho que poderia dizer que isso é amor, mas já amei tanto na vida que acredito que é exatamente o que mantém a estrutura disso que sou. E por muito já ter amado, não acho que seja amor. Eu te amei muito, inclusive. Tanto, tanto, que parece que só queria que chegasse amanhã pra que pudesse te amar mais do que hoje.Tanto, que só de pensar que pudesse te perder um dia, me via de joelhos. Tanto, que colocaria todos os meus amanhãs em suas mãos. Tanto, que entregaria a minha segurança pra alguém que nunca havia a sentido. Tanto, que quando me deixou, tudo de bonito em mim se foi junto. Tanto, que hoje, aqui, agora, acho que não me sobrou nada além de supressão e selvageria. Te amei tanto ontem que creio que continuo te amando hoje.

Mas hoje, especialmente hoje, senti vontade de te escrever. Escrever pra dizer que a lua tava diferente e queria que você soubesse. Escrever pra te dizer que não sei como vai ser amanhã mas torço pra que não seja assim. Escrever pra te dizer que quem sabe esse vazio, a dor e a inveja signifiquem que hoje eu senti falta de ontem, e quem sabe sentir falta de ontem não seja apenas uma forma de te dizer que hoje, especialmente hoje, eu morri de saudade de você.

Hanna Campos
Enviado por Hanna Campos em 10/10/2023
Código do texto: T7905717
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