Carta ao Vinicius 23 (Enquanto isso em Ipanema…)

Me perdoe poetinha se minha poesia versa um tanto quanto diferente da sua.

Não sou poeta, só transformo em letra, através de devaneios, e inspirações avulsas surgidas nas longas viagens de ônibus, tudo aquilo que vejo e sinto. Minha poesia não tem forma, jeito ou método. As emoções me guiam. Sempre. É livre. Como queremos ser. Como seremos. Mas enquanto não podemos ser, que pelo menos a poesia seja.

E lutemos pela nossa.

Dito isso, Poetinha, devo dizer que Ipanema não é só felicidade, nem é como se o amor doesse em paz.

Figuram imponentes duas caricaturas em contraste, da Vieira Souto à subida do Galo. Da Farme de Amoedo ao Pistão.

Enquanto velhos brancos pansudos se lambuzam com a caríssima refeição, a poucos metros de distância está ali uma criança maltrapilha, negra, magérrima.

A playboyzada dessas tão

contraditórias ruas acorda ao meio-dia e vai à praia, a poucos metros de distância estão ali na sarjeta e já cansados do labor, trabalhadores e trabalhadoras descansando do almoço.

Gringos endinheirados e sedentos por turismo sexual se esbaldam na noite ipanemense, mães de família e meninas adolescentes são lançadas à mais vil e brutal exploração do corpo.

Executivos e executivas aguardam impacientes e sob protestos a chegada de seus pedidos no ifood, os entregadores se amontoam e engolem em questão de minutos a já fria marmita que trouxeram. Tudo ali na mesma Farme de Amoedo.

Brancos caminham livremente pelas ruas desse bairro, pretos tem de conviver com a eminente possibilidade de receberem chicotadas de alguma madame racista. E quem dera se isso não fosse literal.

As festanças cafonas, desprovidas de cultura, promovidas pela alta classe carioca e regadas a pó varam as madrugadas despreocupadamente nas coberturas ipanemenses, e ali bem do ladinho, onde foram barbaramente depositados os indesejáveis, a cultura acontece de forma mais vívida e colorida porque é necessário reinventar a realidade tão dura e castigada.

Desse lado há mais brilho, mais poesia, mais verdade, mais criatividade. E não, aqui não. Esse Rio de amor não se perdeu.

É a festa dos Lemman’s e dos Hermann Telles, do doutor Romano e do general Golbery versus a festa dos Silva, dos Santos, das anônimas almas faveladas pulsantes e de tão inigualável energia.

Pois é, Poetinha, pelo menos de lá também se vê na janela um cantinho de céu e o Redentor. Deve ser bom morar perto da praia, e, em finais de ano, fisgar uma boa prata dos gringos.

Mas, de qualquer modo, todo cuidado é pouco na pista e deve-se ter muita sagacidade. Parece que o prefeito não gosta muito de camelô e os guardinha tão descendo o cacete e roubando as mercadorias. Ouvi isso de um moleque de seis anos. Diz ele todo orgulhoso que tacou pedra nos guardas pra ajudar o pai.

Se me disserem que a sua música é de uma outra época e não faz sentido tudo o que eu escrevi por estar fora de contexto, me justificarei argumentando que eu precisava de alguma brecha para começar esse tão desorganizado texto, e a música me caiu como uma luva. E isso já basta.

Embora intimamente eu ache que estamos sim falando do mesmo bairro. Só que com olhos diferentes.

Mas poetinha, não me repreenda tanto. Afinal, eu amo Carta ao Tom 74.