Amigo Van Gogh 2

"Este mundo não foi feito para alguém tão bonito como você "

E eu, meu caro distante amigo, quando nos falamos há pouco tempo, fiquei com a vaga sensação, quase chegando às lágrimas, que o mundo, esse mundo em que teimamos amar, este mundo, amigo distante, não te amou. Ao contrário da sua generosidade em reproduzir cada traço, cada ponte, cada cotidiano da vida simples dos homens, com tanto amor e delicadeza, esse mundo não compreendeu seus sentimentos e lhe virou às costas. Esse mundo, incapaz de ver a beleza nas coisas simples, zombou do seu coração puro e à disposição dos mais puros e sinceros sentimentos. Mas você, querido amigo de tempos idos, de tempos em que eu nem imaginava habitar, você, incompreendido porque via beleza quando o mundo só mostrava desigualdades. Você viu beleza no homem que descansava e fez da Siesta o momento sublime do homem do campo entregue à natureza. Como ignorar a sútil sensibilidade num Par de Sapatos, de 1886. Quando se olha um par de sapatos não há como ignorar serem de um trabalhador que os tirou, talvez, para um descanso, ainda com a barriga fazia? Não. Não há como deixar de pensar: aqueles velhos sapatos trazem a história de alguém que luta pela vida e sai todas as manhãs para um trabalho muitas vezes extenuante e insuficiente para sustento próprio e da família.

Não entendo, na verdade, me dói n'alma, saber que durante sua jornada, dura e mal compreendida jornada, somente Théo, seu amado irmão, dedicou -lhe tempo e atenção. Somente Théo, talvez, igual a você, alvo de escárnio, fosse capaz de ver o que tantos outros preferiram ignorar. Théo, mais que um irmão, soube te compreender, soube cuidar de você, tão dependente de afeto, ou talvez, ciente da crueza com que àquela sociedade tratava os "diferentes". Théo, repito, foi cuidador no mais alto grau do amor.

Ah, meu amigo, não imaginas como eu gostaria de estar sobre a Ponte de Langlois e abaixo, às margens do rio, lavadeiras no seu mister diário. É tão comovente ver essa imagem que às vezes, penso quem seria o carroceiro parado, como se te observasse, enquanto pinta esse belo quadro da vida cotidiana. É, meu amigo, o mundo não estava pronto para recebe-lo, não estava capacitado para ver a beleza numa ponte, num girassol ou numa Amendoeira em Flor que se destaca diante do cinza numa tarde de inverno. O mundo, pobre e envelhecido mundo, não tinha os mesmos olhos, seus olhos, capazes de ver a sutil beleza, a pura beleza, nos pequenos detalhes das coisas simples.

Pois é, meu amigo, lamento que o mundo estava ocupado em virar às costas àqueles que julgava excêntrico ou disfuncional. O mundo, vasto mundo, não soube, porque tinha coisas mais "sérias" para se dedicar. Esse mundo, caótico, tardiamente, hoje lhe dedica espaços e eventos em seu nome. É uma situação estranha, para dizer o mínimo, porque, às vezes, me pergunto, e não tenho uma resposta clara, se o mundo, mundo da sua época, que estava em ebulição e caótico, ou, se você, querido amigo, não nascera num tempo ainda imaturo para o mundo compreender sua Arte? Confesso, não tenho respostas. Faço essas conjecturas para, talvez, como uma espécie de redenção tardia, recolocá-lo, no Pantheon dos grandes mestres. Enfim, caro amigo, quase dois séculos nos separam, mas, ao olhar o Retrato de Armand Roulin, ou o carteiro Joseph Roulin, penso, sua pintura imortalizou duas pessoas, dentre tantas outras, que passariam invisíveis pela história; sua obra, ao nos deixar esse legado, isto é, trazer ao público posterior ao seu tempo essas pessoas, faz com que possamos dizer: o artista dá vida eterna àqueles que um dia dividiu sua existência no mundo.

"este mundo não foi feito para alguém tão bonito como você", mas, não ficou mais feio porque você o deixou mais bonito. Forte abraço.