Meu caro amigo

Meu caro Daniel

Os dias vão se passando, algo intrínseco está se transformando. A força que vem da vida, para algum lugar está nos levando. Tento colocar os dedos sobre as mãos. Tente sentir como se fosse a primeira sensação.

O repartir das memórias, o repensar da revolução. Nada disto nos alimenta, nada disso tem a consistência do pão. O que nos dá sustância está a um passo de nos levar ao abismo, pois os passos que damos, os caminhos que cruzamos nos converte de substância inconstante a algo contínuo, mas somente em alguns instantes... Consegue entender o que estou relatando?

Quem diria que já escrevemos cartas, que já andamos pelas ruas, que já trilhamos pelo mesmo caminho de um trem. Mesmo no distante sítio de um ausente tio, mesmo com o pouco que temos já é possível não sentirmos mais frio.

Consegue entender a sanidade que venho mantendo? Que venho escondendo... O que venho perdendo. Tudo isso para caminhar feito mula sem carga, feito ser indigente cujas lembranças afetivas se dissipam feito folhas ao vento.

Ah, Daniel. Não sei quando irei lhe ver novamente e nem sei se será necessário. Pois já se foram os soldados de guerra, as corridas pela mata, as fogueiras da madrugada. Pondero que não precisamos estar fisicamente próximos. Dado que já compartilhamos o mesmo plano terrestre, a mesma sensação climática, a mesma era política. Os mesmos acontecimentos catastróficos, a mesma poluição contagiante... O mesmo presente, meu caro, o mesmo agora.

Isso já é o suficiente, estar próximo o bastante para darmos conta que a distância é uma ilusão. Que tempo caminha na contramão do que vemos. O que eu vejo na atualidade. Uma sociedade construída em chão de areia. E a maré está subindo e a liberdade vem rugindo, e o tempo se partindo, separando o joio do trigo.

Consegue encontrar sentido na coesão de dois mundos em ascensão ou declínio? Ou já parou de tentar entender e percebeu que o que lhe atrai também avança para você. Com uma mão lhe acaricia a face e com a outra te sangra os dentes.

Não há mais nada o que fazer. Só nos resta cultivar as antigas sementes e preservar as que já se mantinham vivas, mas já estão para morrer. E assim se resiste a febre, assim se desenrolam as correntes. Assim vivemos sem presidentes. Sem a ilusão de partidos políticos, de esquerda ou direita. Sem o delírio de caminhar para um lado enquanto fugimos do outro. Por que não aceitar as desgraças da vida? A alegria da chegada e a dor da partida.

Estar acordado dentro de um sonho, enquanto personagens de jogo onde não há vencedor e nem perdedor. E o que nos retém aqui é a simples vontade inerente de continuar jogando.

Iago

8/VIII/23

iaGovinda
Enviado por iaGovinda em 20/08/2023
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