Uma carta entre amigos

Brasília, 05/05/23

Oi Marilda!

Recebi seu e-mail, hoje pela manhã, como se fosse uma carta, que prazer! Nem pude esperar que o sol se debruçasse no costado do muro, para que eu pudesse lhe responder. É sempre uma alegria enorme falar com você sobre tudo e, também, sobre nada.

Não podemos nos esquecer das nossas conversas ferrenhas sobre a poesia e, principalmente, dos nossos embates calorosos sobre o poetrix: esse bichinho mimado, cheio de garras e três cabeças quentes, que tanto nos faz pensar e dialogar, com seus concisos e malucos versos. Às vezes são tão densos que precisamos lê-los e relê-los, inúmeras vezes, para podermos entender o que foi dito e o que ficou escondido nas abas das entrelinhas. Este último que você me mandou, foi uma grata surpresa, me fez pensar como leitor e não como um escritor. Foi assim que nos vi diante dele - ombro a ombro. Mas vamos em frente, marchando firmes e fortes, sem perder a cadência poética das palavras.

Confesso que esperei ansioso por sua resposta ontem, como havíamos combinado, mas imaginei mesmo que você estava ocupada com as flores do seu delicioso jardim. O meu, como já lhe falei de outras vezes, tem uma Flor especial: não murcha, nem perde o cheiro... um verdadeiro encanto!

Ouvir de você:  "Desculpe não ter cumprido com a promessa de responder tua carta ontem. Terminei muito tarde a minha lida de jardinagem. Chegou a noite, eu estava exausta e só queria tirar a terra que estava em todos os cantos do meu corpo. Mas, antes de dormir eu li. Emocionei. Já disse em outras ocasiões que o Poetrix para mim, tornou-se um estilo de vida. Ele ampliou o meu modo de entender e praticar o minimalismo.", foi encantador!

Fiquei feliz demais ao ver que você destacou uma parte, tão importante para mim, da minha própria fala:: "Através da arte minimalista o autor instiga o leitor a viver melhor, a se desapegar das coisas inúteis e fúteis - um verdadeiro descarte! Essa forma de expressão busca despertar um olhar mais acurado para os prazeres que o consumo desenfreado da vida moderna não consegue comprar. Para mim, a essência do minimalismo pode ser resumida em uma única frase do poeta Mario Quintana: "Eu moro em mim mesmo". "

Já no final do e-mail, você arrematou: "Nesse parágrafo, você escreveu o que eu gostaria de ter escrito. Perfeito! Eu só não sou minimalista com as folhagens do meu jardim. Mas, as jararacas, aranhas e gambás me deram um ultimato. Pratiquei o descarte do excesso. Vou me contentar com a mata nativa que mora depois do meu muro.".

Falarmos mais o quê?! Não é mesmo, minha amiga/irmã, dos versos e da prosa?!

Adorei o seu poetrix, incrível!

Vou repetí-lo, aqui, para que você o leia, em voz alta, para as suas flores, elas vão gostar de ouvi-lo em uníssono.

Feliz dia, poetas!

Viva a poesia sacra e profana!

Salve, astro negro Alves!

Benção, patrão Mario Quintana!

(Marilda Confortin)

E o seu espanto: "Um poetrix meu? Não acredito..."

Como não ??? Você tem de mim o mais profundo respeito e a maior admiração!!!

Na carta anterior, me esqueci de comentar duas particularidades importantes que vi nesse seu poema:

a) o zelo que você teve ao escrever o nome do poeta Mario Quintana, sem o acento agudo. Segundo ele,  este  entrevero foi um erro do cartório no ato do seu Registro de Nascimento. Esse cuidado é interessante e virtuoso.  Pode parecer uma coisa boba, mas Mário(s), tem muitos por aí. Como diz um filósofo amigo meu: "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa". E este, a quem você se refere tão lindamente, merece todo o nosso respeito e admiração... um gênio da geração do Modernismo.

b) a pontuação, de um modo geral, dá um toque especial. No meu entender, ela diz para o leitor, como é que o autor quer que ele leia o poema. Ela imprime o tom desejado e dá movimento.

Na carta passada, prometi que se você me mandasse um poetrix, eu lhe enviaria uns dois. Vou fazer uma busca nos arquivos da AIP. Quero lhe mandar dois ou três, bem bonitos! Não prometo que serão meus, como lhe disse, vou fazer uma "varredura" pelos meus apontamentos. Irão seguidos de alguns comentários a respeito deles, claro, para que possamos conversar um pouco mais...

Vamos ao primeiro.  

QUE PECADO!

Maresia de lixo humano

Heresia à luz do dia

Mar pintado de esgoto

(Angela Bretas)

A poeta Angela Bretas tem como uma de suas características mais marcantes a crítica social.  Sinto que ela usa os seus versos como uma ferramenta letal, para a busca de soluções práticas, em relação às nossas mazelas.

O título do poema vem carregado de espanto. Um retrato do que ela conhece e respira, no seu dia a dia. Ele indica, com clareza, o assunto da obra.

O primeiro verso "Maresia de lixo humano" é muito impactante.  A palavra maresia nos remete ao cheiro forte e característico que se desprende do mar, na vazante. Só que ela associa a isto, a podridão causada pelo homem, a falta de respeito que temos com a natureza. É o mar devolvendo nosso lixo.

A palavra "lixo", dentro do contexto, tem duplo sentido:

a) lixo humano, como sendo as pessoas sem escrúpulos com as praias...

b) o lixo, propriamente dito, que elas despejam no mar, rotineiramente.

Todas essas "discrepâncias" foram colocadas por ela, dentro do mesmo balaio e tampa.

O segundo verso nos remete ao título pois, heresia significa sacrilégio. O poema é uma denúncia sobre pessoas que, de um modo geral, escolhem cometer tal pecado, sem pudor, à luz do dia. Por vários motivos, poluem os mares com substâncias químicas - lixo, por vezes, atômicos.

No terceiro verso ela arremata o poema com força bruta: "Mar pintado de esgoto". Uma paisagem dantesca que podemos ver a qualquer hora e momento, em muitas de nossas praias.

Um outro poetrix. 

RETRATO

 

tinto sangue

as taças de Caravaggio cintilam

Baco sorri ébrio

(Diana Pilatti)

Este é um poetrix que considero elitizado. Exige, para a sua compreensão, um nível cultural apropriado. Caso contrário, os detalhes mais importantes vão passar despercebidos pelo leitor menos atento.

Sua interpretação requer um certo grau de conhecimento da literatura italiana, romana e grega. Pois bem, Caravaggio foi um artista italiano que pintou o deus - Baco.

Porém, Dionísio é considerado, também, o deus grego da natureza, da fecundidade, da alegria e do teatro. Na mitologia romana, seu nome é Baco. Todas essas informações mereceriam estar, em alguma medida, claras na cabeça do leitor, para que ele não fizesse confusão entre a divindade e o pintor.

No terceiro verso ela descreve um Baco sorridente, que estaria talvez até, fazendo um brinde a um amigo, um brinde regado a vinho tinto.

O título retrata perfeitamente a cena descrita na pintura, por isso ela diz: Retrato.

É interessante o jogo de palavras que foi milimetricamente usado. Veja que os três versos estão nitidamente entrelaçados. No primeiro ela fala em vinho, no segundo tem as taças e no terceiro, um Baco ébrio. Esta engrenagem flui perfeitamente.

Confesso que tive que fazer uma pesquisa mais atenta para compreender este poetrix. Ficou claro para mim que a autora sabia exatamente o que queria nos passar.

Mais um:

MANOEL

de barro e brisa teus poemas

levezas de pássaros

ninhos de chocar miudezas grandes

(José de Castro)

É notória a referência ao poeta Manoel de Barros, feita, no entanto, de maneira magistral!

É interessante a ligação do título com o primeiro verso. Este artifício não é simples, requer conhecimento e astúcia. Até porque o autor escreveu "barro" e não Barros, como é o sobrenome do poeta homenageado. Além do mais, ele não entra na contagem das sílabas do poema (no máximo 30 sílabas poéticas). O leitor menos atento pode não fazer esta convergência, o que seria um pecado.

Um poema a par e passo, com os escritos de Manoel de Barros. Isto fica claro, também, no terceiro verso, um verso com a cara do homenageado.

É bem significativa a ligação do segundo verso com o terceiro - essa "coisa" de pássaros e ninhos.

Este é um poetrix extremamente delicado, O terceiro verso, para mim, é o mais bonito. O contraponto "miudezas grandes" dá um toque especial no arranjo. Aquilo que, embora apresente contraste ou oposição, complementa, enriquece o texto.

Minha querida Marilda, esses são alguns dos poetrix sobre os quais gostaria de lhe contar como vejo e sinto... Sei que você já havia lido todos eles, mas gostaria que você soubesse das minhas impressões e "ouvisse" meus comentários a respeito de cada um deles.

Foram escolhidos, não ao acaso. O da Angela, por ser um protesto ferrenho, exatamente como é o estilo dela, sempre aguerrida e ousada. O da Diana, por ser um poetrix pensado e trabalhado. O do José de Castro, por se tratar de um poema doce e leve, mas muito bem articulado.

Mas eu ainda vou mais longe, não terminei a carta! Preciso falar um pouco dos autores.

É gratificante ler um poetrix e identificá-lo com o seu autor. O poema da Angela Bretas reflete exatamente o seu perfil: uma pessoa aguerrida, ativista, fala o que pensa e não se preocupa com o olhar alheio. O poetrix da Diana Pilatti é exatamente o seu retrato, um poema ousado, professoral, uma poeta que transmite formalmente a sua ideia. José de Castro, um escritor de livros infantis trouxe, para o poema, todo o seu linguajar juvenil e alvissareiro.

Meus aplausos a todos! De pé!

Bom demais ter o privilégio de ler estes poetrix... e "prosear" com você!!

... E viva a poesia!!!    

Grande abraço! Seu fã!

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 13/08/2023
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