fradalhada

Caro confrade,

Cordial saudação de paz e bem!

Convido-te a uma reflexão sobre o sentido da obediência na vida consagrada dos santos capuchinhos. Ao mesmo tempo, expresso-te o bom augúrio, que te seja uma consideração frutuosa. Iniciemos.

*Os santos escolhidos

S. Félix de Cantalice, S. Lourenço de Brindisi e S. Pio de Pietrelcina. Europeus (de onde hoje é território da Itália), respectivamente dos séculos XVI, XVII e XX. Todos irmãos capuchinhos, os dois últimos também presbíteros. Três dos nossos ilustres. E, podemos dizer, em um certo sentido, que todos saíram do primeiro. Você certamente se recordará dos escritos hagiográficos da coleção Fermento na Massa da então Vice Província. Recordar-se-á de algum outro dos nossos santos franciscanos e capuchinhos ao quais tem um afeto pessoal; de Santa Clara, de Verônica e das nossas santas, dos nossos veneráveis (Daniel, João Pedro, Alberto) em processo rumo a beatificação; terá certamente uma alegre memória do Frei Elias Baldelli e de outros tantos irmãos capuchinhos que foram marcados de um modo especial, na cotidianidade da vida, por uma presença toda especial da graça de Deus.

*A santidade encarnada num espaço, tempo, cultura: suporte da obediência

Assim como não existe natureza humana que seja só alma, sem corporeidade, também não existe santidade humana desencarnada da história, do espaço-tempo, da cultura (numa língua, num contexto econômico e social). Qualquer narrativa hagiográfica que negligencie esses aspectos, não passa de um conto de fadas, de uma retórica para entreter ou manipular.

Se alguém imagina que, pelo pressuposto que S. Félix era um simples irmão não clérigo que talvez era deixado de lado pelos irmãos presbíteros e porque era muito piedoso, dócil e pelo esmolar era próximo da gente; ou que S. Lourenço era aquele tipo que se diz “mas, obedecer subindo, quem não quer?”, ou que S. Pio se santificou porque tinha carismas taumatúrgicos extraordinários, além da fecunda associação dos seus filhos espirituais; que apenas por isso se tornaram santos, quem assim pensa possui uma perspectiva reduzida, caricaturesca e carente de uma interessada leitura crítica da vida destes santos. No drama da nossa história, assim como na dos santos, a cada vez que nos aprofundamos no conhecimento daquela existência, mais somos surpreendidos por matizes, perspectivas, acontecimentos que não podem ser nivelados a uma impressão apressada e linear.

*Como foram obedientes?

Os santos são místicos de “pés bem firmes no chão”... Os pés deles eram sujos da poeira das estradas, pois estavam disponíveis para realizar as missões que lhes eram confiadas... Pense na alegria de Félix ao esmolar nas ruas de Roma, ao encontrar Felipe Neri naquela amizade irreverente, ou ao fazer aqueles grupos de várias crianças que lhe seguiam no seu itinerário cotidiano pararem e gritarem em coro “Deo Gratias!”, ou cantarem algum dos vários versos que compunha em louvor do Menino Jesus e de Maria... Pense em Lourenço viajando de modo exaustivo toda a Europa para realizar missões não fáceis e nem sempre bem vindas em nome da Santa Sé, pregando para os hebreus, na frente da batalha de Albareale e, mesmo idoso com as pernas em dor e impotentes pela artrose não lhe ser consentido se retirar do trabalho porque, para a então necessidade da Igreja “uma cabeça como aquela vale mais que duas pernas”... Pense em Padre Pio e no quanto ele sofreu, e não por parte de ateus ou pessoas estranhas...; ainda mais que os estigmas “não estavam como enfeite”... Os santos fizeram um lento, constante e curadíssimo trabalho de irem gastando a sua vida dia-a-dia por Cristo, pela Igreja, pela humanidade. O Espírito do Cristo ressuscitado (Dominum et Vivificantem) gerava neles a caridade-ágape, a partir da contemplação-comunhão com o mistério pascal (sacrifício do Verbo).

Nossos santos possuíam, antes de mais nada a sabedoria que excede toda a ciência humana, tanto que eram procurados para que intercedessem, abençoasse e aconselhassem a membros de todas as classes: pobres e reis, clérigos e leigos, pecadores e santos... Imagine só, que S. Felipe Neri indicou S. Félix para revisar e corrigir um regulamento que S. Carlos Borromeu escreveu para o clero de Milão.

*O primeiro mandamento: o que é obediência?

Recordamos que obediência, refere-se a escutar Ob audire; escutar como o Servo do Senhor (Is. 50, 4-7); como Maria Santíssima (Lc. 1, 38; Lc. 2, 19. 51); como Maria de Betânia (Lc.10, 38-42).

A finalidade é viver a amizade, relação, diálogo com Deus; para isso é necessário escutar. O primeiro mandamento não inicia com a ordem de Amar (a Deus), mas com o Shemá (Escuta! – cf.: Dt. 6, 4-5) pois sem conhecimento relacional-dialógico não existe amor real (amor ao estilo de Deus). Só assim se pode ser discipulo, seguidor, imitador de Deus. E o que Deus faz? É Emanuel: Deus conosco! “Eu vi a aflição do meu povo! Escutei o seu clamor e desci para os libertar” (cf. Ex. 3, 14).

Os nossos santos não faziam apenas obras filantrópicas / sociais ou davam um prato de comida, pão, ou esmola para os marginalizados como uma espécie de ansiolítico para a consciência, para dizer à sociedade que a instituição não “está de braços cruzados” ou mesmo para cumprir o preceito das obras de misericórdia e seguir em paz para a liturgia ou apenas se ver livre do infortúnio. Eles realmente sentiam e compreendiam que aqueles marginalizados eram pessoas humanas, dignas de sentar à mesma mesa do convento ao lado dos frades...

"Aquilo que era amargo se converteu em doçura da alma" (cf. Testamento de S. Francisco de Assis); porque eles todos respiravam o oxigênio do espírito de santa oração e devoção: amigos de Deus. Assim como S. Francisco aprenderam o método de ler/escutar não só o livro da criação e da escritura, mas sobretudo o livro da cruz de Cristo, no crucifixo, nos crucificados, na Eucaristia, no mistério do Verbo feito homem nos braços de Maria.

Por que esses capuchinhos, jamais descurando dos seus deveres, tiravam do seu tempo livre para ficarem diante do presépio, do crucifixo e sobretudo em adoração eucarística? E mais, sempre se certificavam que não tivesse alguém a mais na capela, pois sabiam que o momento de diálogo/escuta de Deus não era show ou teatro para terceiros...

A verdadeira obediência é ser criatura humana no sentido mais original (ser vivo que fala, que é racional, que é social – senso aristotélico) sendo à imagem daquele que é a Imagem por excelência do Pai e está eternamente voltado (em relação) para o Pai (cf. Jo 1). Sem essa amizade com Deus, não se é verdadeiro profeta, pois não porta a Palavra a ser proferida. Por isso todos os nossos santos dizem tem uma Palavra a dizer para o mundo, frequentemente falam com a vida, testemunho sem pretensões de ser, profetismo espontâneo e natural

*Uma visão de Fé da realidade

No entanto, estamos numa situação marcada pelo pecado. E se dele fomos perdoados na fé e no batismo pela obra da redenção realizada pelo Verbo encarnado e glorificado, ainda se deve viver a vida como ascese e estado agônico, pois ainda que o inimigo do gênero humano já esteja de certo modo ligado em virtude da cruz de Cristo, a nossa situação de fragilidade como consequência do pecado aguarda ser transfigurada plenamente. Nesse sentido, a penitência foi entendida como valor primordial da nossa reforma de irmãos menores; os nossos santos faziam muita penitência, muita ascese. Esse foi um dos pontos fortes da nossa primeira constituição que permanece na atual.

Por essa capacidade/graça de estarem em amizade e frequente obediência à Palavra de Deus, estes nossos santos tinham uma profunda visão da realidade. Porque sabiam muito bem que já fomos amados por primeiro pelo Pai que nos deu o seu Filho para nos fazer filhos, esses santos tinham uma percepção imediata da realidade, das necessidades dos confrades, das pessoas que encontravam, tinham o gesto e a palavra certa para todos pois pela constante relação com aquele que é a verdade e a caridade, conseguiam ler as consciências em níveis profundos diferentes, tinham o carisma da verdade na caridade.

No entanto esse realismo, não os isentavam de intuir certeiramente as intenções dos corações dos superiores na Igreja e na Ordem, superiores santos ou pecadores... Quando algum superior usasse de má-fé ao ordenar a esses santos que tinham uma visão tão límpida e perspicaz da realidade, eles obedeciam e, não raras vezes padeciam aquela obediência dada propositalmente para lhes prejudicar, porque ao passo que o mal superior, digamos “maquiavélico”, visse apenas uma parte da realidade e de modo míope, o santo por estar na verdadeira obediência ver o todo e da perspectiva de Deus e da sua economia da salvação.

Os nossos santos não foram piegas, massa de manobra ou alienados. Pelo realismo da vida no Espírito Santo eles viam tudo muito claramente; viam da perspectiva escatológica. Aquilo que um frade ordinário deve conhecer de semiologia, artimanhas políticas, sistemas econômicos, sociais e psicológicos para decifrar certeiramente quando um superior usa de má fé, usa da retórica e do teatro para manipular a massa dos seus subordinados com fim nos seus interesses individuais ou corporativos, os nossos santos viam bem e mesmo assim, condenando o pecado, obedeciam pois anteviam a obra de Deus no fim.

*Duas "doces" ilusões atuais

Na exortação apostólica Gaudete et Exsultate (19/03/2018), o papa Francisco alerta para duas ameaças à autenticidade da vida cristã: o neo-gnosticismo e o neo-pelagianismo, que estão aparecendo como duas faces da mesma moeda que é um simulacro da obediência à Palavra de Deus. Enquanto uma tendência quer se recolher em grupos, elites privilegiadas, dentro da Igreja, espécie de farisaísmo; a outra quer usurpar os papéis da graça e da providência de Deus, pretendendo salvar o dogma, a liturgia e a moral cristãos a partir das próprias forças. Estão surdos à Palavra que inquieta e desinstala e na “doce” ilusão que são obedientes, adoram um ídolo de Deus, posto que não escutam o Deus vivo e verdadeiro; caminham para o inferno, julgando-se na estrada do céu.

O realismo da cruz de Cristo, vivido e testemunhado na história, pelos nossos santos capuchinhos nos ensina que sem amizade/ relação com Deus não existe genuína obediência, não existe autêntica gratuidade.

Agradeço-te, nobre coirmão, a tua interessada companhia neste itinerário.

Deus esteja sempre contigo!

Jonas M. S. Silva OFMcap

FONTES:

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

CORDOVANI, Rinaldo. San Felice da Cantalice: l’uomo del pane. Torino: Velar, 2012.

CRISCUOLO, Vincenzo [org.]. Os capuchinhos: fontes documentárias e narrativas do primeiro século (1525-1619). Brasilia: CCB, 2007.

DA FARA, Lorenzo. Padre Pio: santo, umile e amato. Torino: Velar, 2005.

FRANCISCO de Assis. Testamento.

PAPA FRANCISCO. Gaudete et Exsultate (19/03/2018).

ZENONE, Frei; ARTUSO, Frei Fernando. Irmãos Felizes [Trad. Fr. Manuel P. Pereira]. Lisboa: Difusora Bíblica, 1989.

ZILIO, Paolino. Lorenzo da Brindisi: fervente discepolo del Signore e suo sapiente apostolo in Europa. Torino: Velar, 2021.

SOUSA DA SILVA Jonas Matheus
Enviado por SOUSA DA SILVA Jonas Matheus em 17/05/2023
Reeditado em 04/06/2023
Código do texto: T7790101
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.