Carta à Gina

Amiga dileta:

Que há de novo?

Sei que é sempre novo o anelo de um novo dia quando percebemos que inevitavelmente o em que estamos e que vivemos há de se extinguir. E aí ficamos tristes.

Lembra-me menino em meus folguedos e diversões em companhia de amigos...

E por motivo do entardecer, éramos recolhidos a casa, obedecendo ao chamado de nossos pais...

Até que eles contemporizavam, mas havia um momento que nada adquiríamos ao pedir que nos esperassem um pouco mais, e a resposta era: - “nada de pera'í, já é noite, tem que tomar banho, jantar e dormir, amanhã tem escola logo de manhã e...”

O argumento era invencível, não havia como contra-argumentar.

E cordatos, sabedores de que um novo dia iminente chegaria, não nos restava senão dizer: -”está bem, já vou.”

E tinham razão. Nos despedíamos dos amigos.

De fato, estudando pela manhã, deveríamos acordar dispostos, não ressonados a fim de termos bom rendimento, sobretudo na compreensão de disciplina que dependesse de raciocínio lógico.

Mas se um novo dia haveria de surgir na expectativa de seriedade, responsabilidade de estudo, por compensação, as amenidades eram previsíveis também.

A começar no próprio local de trabalho, porque estudar se nos era trabalhar, só diferia que não havia remuneração, todavia, levávamos uma gorjeta para o lanche, isto como alternativa se o não trouxéssemos de casa.

E lanche implicava intervalo em cujo lapso haja correria, assanhamentos tipo o de sorrir para uma colega, cumprimentá-la, quando não, se vencido o medo, lhe beijar o rosto e pegar na sua mão.

Ato sucedido de pigarros ou han-han suscitados por inveja ou malícia de candinhas... nos amigos a reação era diferente. Havia um abraço, uma gravata e elogio, além de incentivo.

- Ela gostou, está a fim, aliás, todo mundo tá sabendo!

Um sorriso de satisfação e ao mesmo tempo de temor pela repercussão de que todo mundo já sabia...

Incontinenti o sistema cardiológico cuidava de denunciar o extremo pudor com o fluxo sanguíneo maior e concentrado, ruborizando a cara.

E o “o ih, ficou vermelho”, era o suficiente para o recuo e mudança de atitude no próximo recreio.

A colega por sua vez enchia-se de brio, com mistura de rancor, pela covardia ou o tipo mauricinho, metido que só!, sabe-se lá por qual dos motivos, o certo é que a distância era preservada e um mero cumprimento recheado de desdém de parte a parte, dando a cada um a oportunidade de interpretar a seu modo.

- nada tem a ver, muito meninão pra mim.

- patricinha, não anda a um metro além de casa, e o papai logo a acompanha...

O tempo incumbia-se de repaginar aquela história, na inserção de novo elemento que mal se presumia possibilidade, e este era o gaiato da sala vizinha, mais velho na idade e já 'expert' na arte de cortejar ou iniciar as meninas assanhadinhas e ávidas de beijinho e amasso: não dava outra, com certeza.

Estaria ela com razão? Em parte. Mas a culpa cabia à natureza parcial que lhes dava vantagem, porque nem bem saíssem da casca do ovo, uma a outra se exibiam, plenas de afirmação em si mesmas da mulher que já eram (sic), na menarca inevitável, fato biológico comemorado por mamãe e papai participativo, além da justificativa do uso do primeiro soutien, amparando sutil e frontalmente os botões na ânsia de vir a ser, sem tardar, exuberantes mamões!

E esta festa de um lado, do outro nada, ausência de qualquer sinal, sequer um capim ralinho ou disperso no triângulo pubiano, se bem que houvesse exceções, nas quais não se incluía infelizmente. Resultado: o primeiro amor abortado, adiado, e como regra de consolo, a quadra de futebol, a despeito de horário exíguo para o recreio, enquanto ela esbanjava contentamento e 'maturidade', sendo apertada ao peito por aquele sortudo, debaixo de árvore frondosa que cuidava de atapetar de flores – caídas – todo o terreno em derredor, como se aprovasse os pombinhos enamorados. Pois sim! O primeiro desgosto, despeito, e a ideia a se formar de que o amor não seria apenas mar de rosas, lido aos poetas.

Mas afinal o dia passando... e a gente nem se dando conta de sua gravidade – passar - , consumi-lo e perdê-lo.

Mas que nos adiantaria parar para pensar demais, se nada poderíamos fazer para modificar, parar o giro imperturbável do tempo, detê-lo quando tudo às mil e uma maravilhas (o)corresse para nós...

Por outro lado, no entanto, que seria da gente se a maré ruim não passasse quando atingidos...

O fato é que o fardo foi vencido. A manhã se foi.

A sessão da tarde, quando imperdível, motivo a mais para a equipe unidos-venceremos reunirmo-nos extraordinariamente prolongando o prazer da companhia!

Eu sei que, haja eternidade ou não, enquanto pudermos existir, ninguém há de negar que um dia sucede sempre o que passou, nos dando uma sensação de bondade do Senhor e Criador da vida, nos acostumando (mal, será?) a sermos pródigos, ricos de sorriso, entusiasmo, otimismo de viver, dando um desconto aos dissabores, desencontros com que porventura nos depararmos casualmente em forma de maldade humana ou outra qualquer.

Seraphim
Enviado por Seraphim em 23/04/2023
Código do texto: T7771020
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.