Carta de amor e de amigo

É meu amigo, desde que o dia se fez noite, não se espante, doravante, e com lamentos, se, contrariamente ao que se acostumou, ver desse pobre amigo, a voz embargada. Lembranças aconteceram de invadir a memória. Recordar os dias juvenis, e também as, igualmente juvenis, aventuras, às vezes amorosas, outras..., bem deixemos para outra oportunidade esses saudosos relatos. Pois é, caríssimo amigo, já vão sei quantos tantos anos, eu, que outrora percorria, sem cansaço essas bandas, ora pois, acredite, que nos últimos tempos, inté uns treis anos pra de lá pra cá, que tenho notado a distancia ser cada vez mais longa. Inté que outro dia, lá pelas bandas de Ninoca, lembra da Ninoca, a fogosa morena que bagunçava todo o coreto das madamas. A mesma Ninoca que fez Jacinto, enlouquecido de amores, anunciar na rádio local, a Radio Jacu, que haveria de chegar o dia em que encheria a Rua das Flores, de flores, dedicados a ela, Ninoca; Jacinto fez, e ficou só nisso. Jacinto, anos depois foi embora e cassou-se com a Dinda, antiga amiga e mortal rival de Ninoca por questões nunca esclarecidas. Eitá! Ninoca era a faísca no brazeiro, lembra? Pois então, outro dia, um dia assim nem calmo, nem buliçoso, um dia médio, entende, nem muito quente, nem frio, não, médio, meio quente e frio, assim, um dia morno. Pois, então, não é que encontrei Ninoca. Como está linda. Continua aquela morenona, um pouco mais velha, claro, mas a beleza está lá, quietinha, escondidinha, um primor a Ninoca. Pois, então, não é que Ninoca veio na minha direção. A danada não perde o viço, o trejeito madreiro. Então, outro dia falo mais da Ninoca. Por agora, caríssimo amigo, só quero dizer, com peso n'alma, com o coração se desmanchando em farelos. Nosso, também querido amigo, amigo mesmo, daqueles amigão, o Tonho. O Tonho chegou aqui em casa, assim, sem avisar, de modo que nem tinha uma cachacinha pra dar pra ele, o Tonho veio, quase em prantos, triste mesmo, o Tonho, nosso amigo de noites de farras, campeonatos etílicos, pois, então, o Tonho, bom de viola, o Tonho veio aqui em casa, faz uns dois meis, veio aqui dizer que ia embora. O coitado, fiquei com pena do Tonho, o coitado, quando disse que ia embora, o coitado quase que se espatifou no chão; eu tive que segurar, ainda bem que eu e Genivaldo, o Geni, cabelo de milho, forte que nem um touro, pois sim, não fosse eu e o Genivaldo, mais o Geni, o coitado do Tonho tinha se espatifado no chão. Claro que não foi nada mais que um pequeno desmaio, uma fraqueza, como disse a Norma, mãe de Dolores e Das Dores, as gêmeas, que perderam o pai, o Berenice, o Bira, o peito de aço, como ele gostava de se apresentar. Então, não fosse o Geni, Tonho tinha se espatifado. E talvez, Deus é bão, nem estaria falando do Tonho vivo, mas do Tonho descansado, do Tonho guardado na memória, da saudade, mas não, felizmente, Tonho está vivo, teimoso como sempre, aliás, lembra da Crotilde, a Crô, a que era louca de amores pelo Tonho, lembra, ela pra provocar o Tonho, dizia que ele nasceu antes da teimosia, que não era ele que tinha teimosia, mas que a teimosia tinha Tonho, pois bem, Crotilde casou com Jacques, o gago, o gaguinho que você gostava de imitar até o dia que Crô chamou sua atenção e disse que essa era atitude de preconceituoso, de um fanfarrão sem graça e sem empatia pelo próximo. Você não respondeu nada; nunca mais fez essas brincadeiras e sempre continuou amigo de Crô e Jacques. Você inté foi padrinho do casório deles, não foi?

Através dessas parcas linhas, não me atrevo, nunca assim faria, de dizer a você, amigo de noites etílicas e tabacos mequetrefes, lembra, saudoso amigo, das noites em claros e belas pernas a transitarem pelo cubículo que era nossa morada? Ah quantas alvas peles nos prometeram o paraíso. Acreditávamos, vivamente, acreditávamos no paraíso. Porém, não acordamos um dia sequer com as mesmas beldades serpenteando nossos colchões. Talvez uma única vez, talvez apenas uma única vez, quando uma bailarina se apaixonou loucamente por você e disse que ficaria morando conosco por uns três meses. Lembro da sua cara de espanto e medo. O espanto em razão da surpresa com que a beldade deu a notícia; de chofre, assim, na lata, sem luva, sem nada, seca, dura, uma paulada no crânio. Você tonteou; não caiu. Hoje eu dou risada, mas ver você correndo pro banheiro com dor de barriga, foi um espetáculo sem outro igual. Você não podia passar situações inesperadas, pronto, vinha a dor de barriga e você correr feito doido atrás de banheiro. A bailarina não entendeu nada. Eu, Macedo, Tonho, Norma e Lourdinha, a enfermeira da Santa Casa, todos a rir de você em disparada pro banheiro e a bailarina, linda moça, não entendendo nada. Claro, ela não morou três meses, na verdade, foi embora no mesmo dia. Anos depois, Vera, a loira de olhos verdes, rival da morena Ninoca, disse que a tinha visto na cidade vizinha. Parece que tinha casado. Estava com um sujeito esquisito, palavras de Vera, e cinco crianças. Disse que a moça continuava bonita, mas tinha um aspecto de tristeza, de corpo cansado. É, a vida faz cada coisa com a gente, não é?

Lembra do Tijolo, do Astrogildo, irmão do Marighela. Pois, então, não é que Tijolo, com seus 75 anos, acabou de ser pai novamente! Você sabe, ele ficou viúvo, tinha lá seus netos e netas, as duas filhas e maridos, todos morando juntos. Não é que Tijolo e Julinha, uma moça de uns 45 anos se apaixonaram. Pois sim, resolveram morara juntos, juntaram os trapo, como gosta de dizer Dita, a Edite, Edite, a mais nova das filhas de Tijolo, que gosta de dizer que se chama Edite por causa de uma cantora francesa, muito famosa nos anos 30, então, segundo Dita, quer dizer, Edite, eles resolveram juntar os trapo. Olha, o menino que nasceu é bonito. Eita moleque bonito. Pra sacanear, o Flor, o Florisvaldo, o menino não parece nada com Tijolo.

Pois é, meu querido amigo, comecei essas linhas dizendo que lembranças invadiram a memória. Peço perdão se algumas que recordei não te agradaram, mas, como em tudo há excessos, você costumava dizer isso quando Narinha, depois de certa noite de farras e excessos, vocês dois quase acabaram presos, você se limitou a dizer "em tudo há excessos". Perdoe o riso, amigo querido, mas vê-lo pálido e com as mãos na barriga, foi a coisa mais hilária que já presenciei. Você, com certa razão, até brigou comigo, e Tijolo, que àquela altura da vida, junto com Tonho, tinham por hábito praticarem salto da ponte mais alta da cidade vizinha e mergulharem rio abaixo, passaram a dizer "em tudo há excessos", quando questionados do por quê daqueles saltos. O " em tudo há excessos" ficou como uma marca nossa. Saudades, amigo, saudades.

Bem, amigo querido, já passam das meia noite, o sono se aproxima, então aqui me despeço. Boa noite.

Sobre a mesa, o retrato do amigo que partira numa noite de excessos. Excessos de amores, de amigos e de saudades.