À Madame Justiça (e às mentes inquietas)
Brasil, 29 de outubro de 2022.
(Peço ao leitor que entregue a presente carta à Madame Justiça, que parece ter deixado este país distante do seu seio protetor).
Saudações, Madame.
Peço que aceite minhas sinceras desculpas por importuná-la em suas férias. Eu, como muitos de meus conterrâneos, além de apreciar o conforto da rotina diária, a segurança familiar, a tranquilidade da repetição, também respeito o descanso das férias. Gosto como qualquer um. Mas no espírito da “ansiedade pré-eleitoral”, onde importantes decisões, geralmente associadas às ideologias replicadas, ou à propagação de inverdades agressivas e certezas absolutistas, são entendidas como munição de guerra, pensei em marcar este 29 de outubro tomando um pouco do tempo de suas férias para conversar. Um costume antigo e raramente praticado neste país que a Vossa Excelência há muito abandonou.
Existem, é claro, aqueles que não querem que falemos. Suspeito que existam leitores, conhecedores das minhas convicções, já lançando meu nome às farpas, demonizando o meu rosto e os dos meus semelhantes. Por quê? Porque onde o silenciamento é incentivado, as palavras representam ameaça. Dialogar se tornou ato de resistência, acredita? Palavras oferecem um meio para a ideia e, para aqueles que escutam, o princípio da reflexão sobre a realidade. E a realidade é que existe uma situação totalmente errada neste país.
Crueldade e injustiça, intolerância e opressão. Onde um dia houve o direito, ainda que mínimo, de discordar, de pensar e falar o que desejasse sem ofender a existência do outro, agora temos olhares vigilantes e armas apontadas para as nossas bocas nos forçando ao conformismo e solicitando o nosso silenciamento. A voz existe, mas foi legada a um único grupo, que sustenta sua liberdade de expressão em nosso medo. Um povo não deve temer seu governo. O governo é que precisa temer a ira de seu povo. Mas o Brasil, Madame, tornou-se um circo dos horrores cuja lona é a própria bandeira.
De quem é a culpa? Com certeza existem aqueles que são mais responsáveis que outros e eles vão ter que prestar contas. Mas devemos admitir: se procuramos os culpados, só precisamos olhar no espelho. Sei dos motivos que levaram muitos de nós a fazerem isso, sei que tinham medo. Quem não teria? Crise econômica, fome e violência, havia uma miríade de problemas que conspiraram para corromper a nossa razão e nos tirar o bom senso. O medo guiou nossas ações e em nosso pânico muitos de nós confiaram num “Messias”. Ele nos prometeu ordem, ele nos prometeu paz e tudo que pediu em troca foi consentimento silencioso e obediente.
Sei, Madame Justiça, que para que esta carta chegue até a Vossa Graça, é necessário que seja lida pelas mentes mais inquietas, posto que é lá onde resides. Então, é à mente de meu leitor hipotético que agora me dirijo.
Meu caro leitor, venho aqui tentar romper este silêncio, através dessa voz que você certamente escolheu para mim em sua mente, para lembrá-lo que igualdade, justiça e liberdade são mais que palavras, são perspectivas. Se você não vê nada, se os crimes deste governo ainda lhe são desconhecidos, eu sugiro que deixe este texto passar em branco, pois sei que não o entregará à Madame Justiça. Porém, se você vê o que eu vejo, se sente o que eu sinto e se busca o que eu busco, então peço que se una a mim na luta contra este governo dito santo, mas de comportamento profano, pois onde as ideologias do nosso presidente residem, até os valores cristãos pulam pela janela. Se você leu a mesma bíblia que eu li, sabe que Jesus jamais empunharia uma arma num campo de batalha, mas cuidaria dos feridos e famintos, daquelas pessoas marcadas por números estatísticos no discurso da história.
Sei que muitos do povo “verde e amarelo” creem num futuro glorioso para a nossa pátria, mas deixar os “entretantos” e partir para os “finalmentes” é aceitar ser o dono da verdade. E a verdade deles é que somos uma ameaça aos seus valores, às suas famílias e às suas vidas. Somos os monstros dos seus maiores medos. Mas que medos são esses? Ora, eles temem as nossas cores, nossas religiões, nossas roupas, a nossa existência. No entanto, não conseguem ver o medo que sentimos diante dos canos de suas armas, nem diante de seus preconceitos. Os medos deles se fundam em estereótipos enquanto os nossos se baseiam no vazio de nossas barrigas e no sangue de nossos inocentes.
Podem achar que não compartilhamos das mesmas preocupações, mas é engano deles. Segurança é algo que todos nós desejamos, por exemplo. Prezamos por nossas família e amigos. Mas enquanto rebatermos violência com violência, a paz não será bem- vinda. É claro que não precisamos abraçar aqueles que empunham armas contra nós, mas é necessário cuidar para que não existam mais indivíduos precisando pôr o dedo no gatilho. Educar nossos jovens não significa impor nossas convicções, mas sim lhes apresentar perspectivas. Conversar com os nossos contrários não significa aceitar tudo o que dizem, mas lhes respeitar por suas singularidades. É preciso deixar de lado as verdades absolutas para dar espaço às dúvidas e assim, às ideias. Deixar de considerar a utopia um sonho e passar a tê-la como objetivo.
Não, não veremos essa árvore crescer. Mas se a semente for plantada, alguém no futuro verá. Enquanto o corpo se afoga no rio do tempo, as ideias surfam na imensidão dos séculos. Então, meu caro leitor, espero que considere entregar esta carta à Madame Justiça, pois sua ausência está sendo dolorosa.