Carta pras montanhas.
Natal tá mais quente depois que tu foi embora, os dias de sol aparecem tímidos, parece até que tu levou o calor junto daquela malinha. Aliás, depois me diga se pagou excesso de bagagem, essas companhias são um assalto.
Minha mente anda se extraviando bastante, sabe? É só soprar uma lufada de ar com teu cheiro pra acabar com tudo. Mas a culpa né sua não.
Dia desses ri sozinho. Lembra aquela blusa que você perdeu, aquela vermelha e com pedrinhas brancas que gostava? Nós até brigamos, cê falou que na minha bagunça não dava pra achar nada, que ia acabar ficando doida, que não aguentava mais.
Esses dias eu achei ela, cê tava certa mesmo. Ela ficou por meses existindo a esmo numa das gavetas, mesmo eu jurando de pé junto que você tinha era perdido, e que era injusta demais comigo. Ainda tô em dúvida se jogo fora, se deixo aqui. Engraçado, a única coisa que você esqueceu , na verdade foi eu quem esqueci. Como se tivesse roubado.
Como você está lendo isso? Tá fazendo frio aí, as roupas demoram pra secar no varal, o pequeno ralou o joelho?
Por favor, me conte essas coisas, você sabe que eu gosto, gosto de ouvir cada coisinha besta, cada detalhe trivial. Tudo aqui anda tão calado, sou só eu e eu.
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Ah! De tempos em tempos vou até a casa da vizinha. Uma senhorinha bem simpática. Outro dia ela foi comprar pão naquela padaria perto de casa e disse que sempre me via passando, agora via menos, que eu não saia mais de casa, disse que se eu precisasse podia ir lá, podia ir que ela fazia um café bom. Ela acertou, precisava mesmo, mas tenho a sensação que ela também queria companhia.
Ela gosta de pudim, um filho dela morreu, xingamos bastante Bolsonaro, descobri que ela é pintora, mas segundo ela, não pinta nada que esteja vivo, a vida é difícil de registrar.
Que locura né, tantos anos vivendo só de "Olá" e a gente nunca sabe da vida do outro.
Eu demorei pra escrever isso aqui, sempre parecia errado. Tentei a primeira vez na semana passada, mas foi só eu fingindo que tava bem, falando que ia vender o apartamento, ia viajar. Eu, viajar, acredita?
Meu amor próprio tá respirando por aparelhos
E em dias frios o coração aperta como se também não respirasse. E assim os dias vão indo.
"Vão indo"
Não é engraçado? Não é engraçado os gerúndios que fazemos ao longo da vida?
Eu sinto a mágoa de mãe nas palavras dela, um "fica bem" suspirado, que se vaporiza. Uma parte de mim dói um pouco quando penso que fui um filho ruim, e é difícil não te ter aqui pra me ouvir, é difícil pensar que se eu chorar nesse apartamento, ou se eu ficar entrançado impaciente pelos cômodos, não vou ter você pra me recostar no colo e fazer cafuné.
Não é louco? O choro só serve pro outro. Você deve estar revirando o olho e rindo agora.
"lá vai ele começar com as teorias"
mas...veja só se faz sentido. Não somos categorias metafísicas isoladas. Do que adianta eu sonhar com você se não posso te contar? Do que adianta passar aquele filme que você gosta, se você não vai estar aqui pra me responder o porque do vilão fazer o que faz, ou rir daquela cena sem continuidade?
Deve ser a lógica da vizinha, ela precisava de alguém pra sorrir e percebeu que eu também
Não precisa se apressar em responder isso aqui, eu sei que você tem suas coisas, mas quando escrever, mande alguma foto daí.
As montanhas devem ser lindas.