Beja, 28 de abril de 1667

Escrevo-te… escrevo-te… escrevo-te de volta ao correio, como sempre foi a nossa promessa, a tua e a de tantas paixões que eu fiquei a vivenciar nas minhas letras escritas à mão esquerda e a sentar-me em qualquer lugar em eu possa sentir um pouco tremor que balançava o meu corpo e a cegueira da minha mente.

Eu era uma moça jovem, uns dezanove anos, um pouco tímida, vestida com uma roupa branca com pequenos detalhes em vermelho, mal havia de ter chegado à nova vila de Beja. Recordava-me de ir todos os dias à igreja mais próxima de casa, prometida a Deus que seria apenas de um homem só, aquele que botaria o meu dedo da mão esquerda… até eu encontrar contigo pelas ruas do centro da vila nas minhas saídas da igreja. Talvez tu não lembres, mas sempre guardei todos os sorrisos e acenos que fazias toda a vez em que estava na rua, indo para a casa, para a taberna ou para os festivais promovidos pela corte.

Não foi paixão aos primeiros sorrisos e acenos, mas foi a chance de tu conversares comigo e conhecer-te melhor, a nossa prosa diária toda a vez em que saia da igreja. Fugi dos terços e passei a acompanhar-te nos jogos de azar. Sentava-me bem próxima, na torcida para ver quão eras o vencedor daquelas cartas…

Cartas… e foi assim que eu comecei a escrever-te no início do outono. Presa por horas na escrivaninha do meu quarto, a imaginar que algum dia aquelas cartas poderiam tocar o teu coração. Entreguei-te duas cartas, escritas em prosas e versos apaixonados. Tu leste, guardaste, abraçaste-me, mas não veio o tão esperado beijado. Este já estava prometido mais tarde para uma rapariga da vila vizinha, que fez o mal de pegar as minhas cartas e queimá-las. Lembras? Talvez com aguardente, tu vais lembrar. Soube no verão seguinte, pelas alcoviteiras de Beja, que ela fazia certos encontros durante o dia, enquanto tu trabalhavas e no raiar do sol, cobria-se de véu branco para ir à igreja. Tu ainda tentaste enviar-me uma carta, mas o mensageiro esqueceu-lhe entregar.

A paixão sumiu com o passar das estações e eu a estar cada mais mulher. Outras paixões atravessaram às minhas cartas, todas com o mesmo teor de paixão e com o mesmo fim de ilusão. Só fui saber três verões mais tarde, quando passei a viver no Porto, que eu havia de receber uma carta apaixonada. Um homem da alta corte de Lisboa apaixonado por mim. O quê tu achas? Estaria eu tão enganada assim? Não me sentia digna de ter um pretendente, mesmo a usar trajes brancos. Comunicámo-nos por cartas e até nos encontrámo às escondidas, sem qualquer toque, porque não havia de ter certeza de que ele seria o tal homem que botaria o anel no meu dedo da mão esquerda.

Tempos depois, apaixonei-me. Escrevi mais cartas, as primeiras ele recebeu, já as últimas ele nem fazia prazer de escrever. Descobri que ele prometeu a mão para uma mulher da alta corte de Lisboa. Fui iludida. A partir daí, eu passei a esquecer que um dia escrevia cartas, comecei a escrever bilhetes e entregava ao mensageiro.

Todos havia uma resposta curta e simples. Eu jogava para um e para outro sem nem mesmo durar uns quatro bilhetes. E se houvesse der-te feito isso na surdina contigo, talvez só seria um momento de três minutos. Por fim, essa desventura de escrever bilhetes fez com que as minhas roupas fossem perdidas o meu desejo pelo anel no meu dedo da mão esquerda acabasse nos lençóis das diversas cores e estampadas. Sim, o meu caro, eu estraguei-me. Estraguei-me em nome… do nada, através da penúria de um anel do dedo da mão esquerda.

Estações mais tarde, eu voltei a escrever cartas e, acredite, eu até encontrei uma nova paixão, um rapaz lá de Trás-os-Montes, para escrever em prosas e versos, e mesmo a voltar a usar trajes brancos, não serão os mesmos dos meus dezanove e vinte e três anos. Escrevia até com timidez, assim como da primeira vez que te escrevi. Entreguei ao rapaz e o fim não poderia tão diferente se não a ter que ficar, de novo, sozinha, a espera de um certo alguém em que o tempo não parece mais comportar as coisas.

Paguei caro pela busca do anel no meu dedo da mão esquerda. Nem tu e nem ninguém de Beja há de saber quanto isso me deixou mais vulnerável e ao mesmo também cética com qualquer pessoa. Para ser mais honesta contigo, nem quero mais isso. Só hei de pedir a Deus para ser, ao menos, feliz e, quem sabe, apaixonada de novo. Não por pessoas como tu, nem como os outros que passaram por mim, mas apaixonada por viver, simples.

Com o carinho que me resta.

Mariana.

Mariana dos Expedicionários
Enviado por Mariana dos Expedicionários em 31/05/2022
Código do texto: T7528128
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