Carta a meus pais
Queridos pais!
Hoje, dia ensolarado, quente de me fazer trocar a blusa ao entrar no quarto, após comprar o pão da manhã... Senti muita saudade de vocês! Engraçado, sempre são da infância. Numa época em que se queixavam das dificuldades de cuidarem dos oito filhos vivos. Eu devia ter dez anos. Mas, são minhas melhores lembranças. Com muita freqüência sonho com aquele tempo.
O sol tremendo ao se alongar a vista pela janela. Tu, Mamãe, sempre às voltas com as costuras. Eu a rodear-te pedindo que me ensinasses a fazer os vestidos das bonecas de pano. O que fazias com carinho, a despeito de todos teus afazeres: cuidar de tantos filhos. Distribuir tarefas e supervisioná-las com firmeza. Fazer as costuras com datas apertadas para entrega. Acompanhar o trabalho das pessoas na enorme horta à beira do rio. Cuidar das moças com os namorados, uma enorme preocupação das mães daquele tempo. As mães eram as guardiãs da honra das filhas mulheres. Tinham de prestar contas aos maridos, se algo de errado acontecesse. Aos irmãos mais novos era recomendada a vigilância dos mais velhos, que, quase sempre, era negociada com balas e biscoitos.
Uma das lembranças mais freqüentes de ti, mamãe, talhando as costuras e eu a juntar os retalhos para fazer os vestidos das bonecas. A minha casinha era sob a mesa, onde cortavas as roupas. Eu mesma fazia os cabides, com pedacinhos do galho da goiabeira, amarrados pelo meio, com um pedacinho de fio. Eles eram apoiados num fio maior, estirado por dois pregos, na lateral da mesa, por baixo. Não lembro se alguma das minhas irmãs ficava ali, em meu refúgio, costurando as roupas das minhas filhas de pano, olhando-te sentar e levantar da máquina para arrumar a costura na mesa.
Papai, tu após vender o engenho viraste tropeiro. Chegavas com aqueles animais carregados e chamava o “Pé de Curica” (pés aleijados, virados para dentro), como era conhecido o Sr. Antônio, empregado da família. Ele te ajudava a tirar as cargas e guardava no quarto de depósito. Depois levava os burros e jumentos para beberem água no rio e lavá-los.
Tu sentavas na cadeira preguiçosa de lona e contavas as histórias e dificuldades das estradas. Mamãe deixava a sala de costura e ia até o quarto ver as mercadorias. Mas logo voltava e os dois conversavam enquanto ela costurava.
Tínhamos muita fartura na casa. Tu sempre trazias novidades: Latas de marmelada, goiabada, doce de leite, balas de leite... Ainda sinto o sabor daquela bala rolando na boca de um lado para o outro e a caldinha descendo pela garganta.
Um dia chegaste com pêras, maçãs e uvas, que eu só conhecia da cartilha do grupo escolar. Naquela época, era difícil aparecerem na região nordeste onde morávamos. Hoje, já de colhem duas safras por ano, às margens do São Francisco. Não querias que bancássemos "os bestas", se víssemos aquelas frutas fora de casa, era o que dizias.
Mamãe, tu achavas besteira gastar dinheiro com aquilo, se tínhamos ali no quintal: manga espada, laranja-da-baia, caju amarelo e vermelho, lima da pérsia, goiaba à vontade, bacuri, açaí, pitomba, tamarindo (só de lembrar minhas glândulas salivares já se derreteram). Mas, meu querido pai, tu querias que os filhos conhecessem também, aquelas frutas diferentes, que víamos nos livros de leitura do primeiro ano.
Obrigada meus queridos, por me passarem essa visão de ir além daquilo que nos cercava. De que não nos deveríamos submeter a ninguém de maneira humilhante. Que deveríamos buscar sempre o melhor em qualquer situação. Que deveríamos ser sujeitos da nossa própria história. Os dois estão juntos no andar de cima, mas seus exemplos permanecem com cada um de nós.
Praia do Anil, Magé – RJ, 22 de novembro de 2007.
Benedita Azevedo