A casinha de dois passos ( parte 5 )

A " casinha de dois passos " parte 5

Não demora acaba-se o serviço na casinha de dois passos. Vou pelo caminho e, às proximidades , os ares natalinos começam a brotar. Um festival de enfeites que remontam muitas sensações e fazem-me viajar no tempo. Algumas folhas arrastadas pelo vento fazem lembrar brincadeiras de crianças quando as pulava. Meus passos, em escalonados instantes, tornam-se lentos e, à medida que me invadem recordações, parecem querer absorver cada lembrança. Não me demorou e, recordo-me do tênis recém comprado naquela véspera de natal . Fecho os olhos, abro a caixa e, os olhos brilham, aspiro aquele cheiro, como quem sorve o cheiro de um livro novo. Aquele tênis descolado da época . Corpo robusto, detalhe de nylon azul mesclado ao couro, deslizo-lhe os dedos. O solado com suas reentrâncias parecem cordilheiras. Certamente os passos mais cadenciados parecem imitar os passos do primeiro dia em que usei o tênis. Nada de arrastar os pés, nada de pisar em lamas ou coisa que viesse a tirar aquele esplendor.

Ao entorno, as casas mais parecem disputar um festival , um concurso de mais enfeitada. Observo que, enfim, uma delas fez a poda da roseira tristonha, as dezenas de botões dizem o quanto ela é feliz , agora. Já à porta da " casinha de dois passos " , posso ver os enfeites que Eulália e Olavo puseram. Bato à porta , Olavo usa um gorro à cabeça, brincalhão como ele só, imita o tradicional " hou. hou, hou " do papai noel. É engraçada a cena pois, está mais para um dos ajudantes anões do que para o próprio noel e, precisaria engordar muito para chegar um pouco perto da fantasia. A casa respira ares de fim de ano , a cesta na mesa deixa pender um pão para rabanadas. Parece que Eulália começa cedo os sabores do natal. Uma caixa de panetone está aberta e fatias com pingos de chocolates e frutas estão para servir junto ao café que ela prepara na cozinha.

" Entre , entre " disse-me Olavo e completou: "sente-se à mesa" .

Deixo minha bolsa de ferramentas à porta.

Eulália chegou à sala. Seus cabelos finos bem penteados, parece refletir como prata ao brilho do sol que entra pela janela. Ela está linda com seu vestido rosa, parece uma ao amanhecer.

Já havia algumas semanas que o serviço em casa deles havia parado. Ali, na casa aumentaram as recordações que me levaram a viajar . Da sala ouvia aquele som de uma caixinha de música, a mesma que, em minha infância, ouvia minha mãe por à tocar. Ela abria a caixinha no formato de coração e saia uma bailarina que dançava ao som daquela mesma música. A sala da casa com suave cheiro de óleo de peroba me levou, ainda, mais aos tempos de infância. Quando criança, como gostava de lustrar as madeiras só para sentir o cheiro do óleo de peroba e, ao fim de ano , a casa recebia tratamento especial com móveis lustrados em dobro , chão encerado a " todo instante ". Perceberam que eu estava viajando e Eulália com um sorriso me pergunta sem perguntar:

"por onde está viajando , rapaz ? " .

É engraçado ela me chamar de rapaz , tendo eu cinquenta e um anos, é bem engraçado. Então, lhe disse que tudo ali remonta lembranças passadas. Ela me levou ao quarto de onde vinha o som e, vi a penteadeira de madeira pura de tom marrom escuro que brilhava ao óleo que acabara de passar. As duas abas de espelho laterais com um ao meio faziam aquela penteadeira deslumbrante, certamente, pelas três Eulálias refletidas neles. Nela , a bailarina, ao som das últimas notas , ia diminuindo o seu ritmo de dança até parar.

" Vamos tomar café " , disse Eulália , fechando a caixinha de música.

Tudo ali parecia querer me conduzir às lembranças. Olavo está terminando de pôr os galhos de uma antiga árvore de natal , ao lado uma caixa , provavelmente dos enfeites , aguarda ser aberta. É tudo muito lúdico e encantador ali. Tomo meu café e vou ajeitar uma parede irregular. No trabalho, aproveito , alguns poucos pedaços de lascas de tijolos para preencher a irregularidade e diminuir o gasto de massa. `A cada caquinho colocado , vou imaginando o mosaico que ia se tornando e penso como a vida, por vezes se assemelha ao momento de ali. Por vezes precisamos preencher vácuos de dependência para acertar situações. Juntamos os cacos na esperança de conseguir corrigir o que não deu certo. Terminava o serviço , ao som de Olavo em cantarolas de natal.e com um delicioso cheiro de canela com que Eulália polvilha as rabanadas que prepara. Senti falta das charadas logo à entrada. Talvez Eulália tenha advertido a que desse um tempo - pensei e sorri .

Com o serviço pronto, nem pareceu mais que ali, antes, fora uma parede irregular que precisou de um reparo. Já na sala vejo a caixa aberta e , meus olhos brilharam. Abaixando-me , fiquei paralisado como a percorrer os tempos . Como era possível ? Não podia ser . Olavo com todo cuidado retira de entre algodões na caixa a primeira bola vermelha de vidro finíssimo. meu reflexo nela logo me transportou ao tempo de criança quando brincava de caretas nos reflexos emitidos na bola. Tirou outras bolas vermelhas, amarelas , depois prateadas , verdes e azuis. Tudo ia numa intensidade de sensações e, em cada um de tamanhos variados e de muitas lembranças de cenas repetidas que poderiam durar para sempre que não enjoaria. Enquanto eu brincava de ver as transformações de meu rosto à cada bola , me perguntava como podiam ter, ainda, bolas de natal de vidro.

A casinha de dois passos é mesmo um sonho. `A mesa estão fatias de panetones, uma linda garrafa vermelha de café e a cesta pendendo um pão para rabanadas. O cheiro de óleo de peroba, as cantarolas de Olavo, as antigas bolas de vidro na árvore de natal , a penteadeira de Eulália e sua bailarina , tudo , tudo naquela casa é especial . Na saída , à porta , Eulália me prepara uma bolsinha com algumas rabanadas para eu levar , agradeci e beijei-os à testa e, antes de ir , deixo uma charada:

" Apesar de distantes dez passos entre si, ao mesmo tempo estão juntos quando um vai embora e o outro chega. Olavo brinca e diz :

" Hum!! Pegou pesado , meu rapaz. "

Eulália sorriu aquele sorriso que é doce como o amanhecer e disse :

" Olavo vai passar a semana inteira ocupado só pensando na resposta. " .

Sorrindo, e já indo embora, ainda, ouvi a porta se fechando enquanto ia me deliciando com o entardecer e com as primeiras luzes de pisca - pisca emitindo seus encantos de todo final de ano.

EjanuarioN
Enviado por EjanuarioN em 24/02/2022
Código do texto: T7459211
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