A casinha de dois passos ( parte 2 )
A casinha de " dois passos " parte 2
--- É domingo, quase 10:00 hs, quando pelo caminho as lembranças da visita passada à casa de Eulália me levam. Estou pensando: " - que outros agradáveis momentos passarei ali ? " À entrada de extensa vila, algumas crianças com suas naturais correrias estridentes, inevitavelmente, me forçam à memória. As barulhentas ararinhas verdes que sempre voam por lá onde moro parecem crianças. Cada dia que passam com aquelas estridentes algazarras, tento contar em quantas vão. Outro dia contei 16. As crianças sempre serão o som, a voz do juízo a dizer- nos o quanto crescemos e nos distanciamos da simplicidade de viver.
--- Em lentas reflexões que acompanham meus vagarosos passos, ouço diminuir a gritaria. Sigo em lembrança de infantil brincadeira ao caminhar equilibrado ao meio- fio da rua.
Chegando à "casinha de dois passos " , à porta, é Eulália quem me recepciona com sorriso aos olhos.. Os raios de sol que brindam à entrada fizeram a brancura de seus cabelos como uma prata polida. Assemelho à brancura da neve o tão lívido rosto que, com suave e imperceptível rosado, delineado de seus cabelos curtos à altura do pescoço, conferem-lhe o ar de leveza. Junte-se a isso o seu singelo sorriso que é como uma pérola que brilha e, tem-se a inigualável moldura jamais criada por nenhum artista .
Os frisos de borboleta douradas destacam-se ao brilho do sol e emitem pequeninos raios, fagulhas como de ouro. Um de cada lado a prender-lhe mechas de cabelos, conferem- lhe o certificado do quanto é caprichosa no cuidar-se. Desde de que vou ali, é primeira vez que os vejo enfeitá-la. Ela está mais linda neste dia. Indagações me invadem. Há quanto tempo os tem? Terá sido de seu primeiro encontro com Olavo? Ele está à mesa segurando entre as mãos as linhas do bordado de Eulália. Está explicada a razão de ela ter vindo abrir a porta.
--- Ali é o típico lugar que dá vontade de entrar, sentar-se com um livro na mão, ouvir histórias e não mais sair. O segredo daquele lugar? A longevidade dele? Eulália e Olavo, eles dois, sempre falam de sorrir. E, como não achar riso naquele lugar? Olavo brinca de olhá-la entre as linhas e, ela sorri o sorriso que nem mesmo as flores sabem sorrir. Aquele momento é mágico. Quantos momentos percorreram e. desbravaram esses pequenos gestos? Quantas pedras retiraram do caminho? É quase automático, mas não há mecanicidade. A espontaneidade de sempre acontecer a química natural, a simbiose perfeita - o amor recíproco.
Esse é um dia especial para eles dois. Eulália e Olavo completam mais um ano de cumplicidade. Talvez por isso os frisos de borboletas. Nem sou digno de estar ali em momento tão nobre. O bordado dourado no círculo consta 50 anos . Cinquenta anos é minha vida até aqui. Desde os seus 20 , Eulália cuida de Olavo e , ele desde os seus 23 cuida dela.
--- A casinha de " dois passos " é tão rica que a própria Taj Mahal invejaria àquele lugar. Não há riqueza no mundo, palácio algum que possa equiparar-se à casinha de " dois passos " .
--- Eulália, retornando ao bordado, pega a agulha e senta-se à cadeira. Olavo olhando-me entre as linhas que segura enroladas entre as mãos, me deu um " olá " e, convidando-me a sentar, continuou brincando com Eulália. Entre eles, é como se diz : " - é sempre como a primeira vez, o primeiro olhar."
- O café está na mesa, ela me diz para servir-me. Digo que estou sem fome. Aquele olhar de Eulália parecia ler-me. Natural que setenta anos conseguisse ler cinquenta. Quando eu nascia, Eulália já estava com seus 19 anos e, certamente, já conhecia aquele Olavo brincalhão sentado ali em frente à ela. Com um olhar de compensadora candura à cada ponto do bordado, Eulália diz :
" --- Não pense muiito. "
Disse que isso atrapalha. Diz para viver o momento e descansar. Disse e sorriu. Sorri junto e pensei - é difícil mas , vou tentar.
--- O café ainda estava bem quente. A fumaça que subia da xícara, dançava serenamente até sumir entre os finos raios de sol .
Saboreei um pedaço de bolo de milho. Estava tudo delicioso. Nada como um bom café para começar o dia. Pedi licença, levantei-me,
fui ao quarto preparar o chão para pôr o piso. Enquanto levantava, Olavo virou-se para mim, talvez buscando descontrair, olhando por entre as linhas fez o que sempre gosta de fazer, lançou a charada :
"- na fila sou o décimo primeiro e, se
pronunciado com fé torno-me um cobiçado produto. Quem sou? "
Eu.sorri e fui fazer o serviço no quarto. Ainda ouvi Eulália dizer-lhe como a docemente zangar :
" - já de manhã cedo , Olavo? "
Demorei um pouco no quarto preparando o chão, enquanto matutava a charada proposta por Olavo. Retornei à sala e olhando fixo a mesa, disse: " o décimo primeiro da fila é o K e, se pronunciado com fé torna-se " - café " , um produto muito cobiçado. " sorrimos.