nove meses sem ela

     Quando o carro descia daquela rua de barro e virava à esquerda, parando em frente ao portão daquela residência de fachada verde, não era preciso esperar muito, logo a porta da cozinha se abria e cortando caminho pela garagem coberta, com um sorriso largo no rosto, vinha ela abrindo os braços e dizendo nossos nomes, limpando as mãozinhas no avental e pedindo desculpas pela bagunça, bagunça essa inexistente porque o chão estava sempre limpo e encerado, não havia louças na pia nem no escorredor, nem pó nos móveis ou vidros sujos, tudo estava no devido lugar.

     Havia no quintal um galinheiro e também alguns pés de couve, além de um pé de ameixa e um abacateiro. Suculentas, samambaias, roseiras e as flores-de-maio. Havia sempre uma dupla de cachorrinhos a nos receber no portão, pulando, lambendo, chorando de alegria. Havia uma gatinha dorminhoca e fujona. Havia sempre uma criança batendo palmas no portão para comprar um geladinho. A plaquinha estava pendurada no poste e ainda hoje não encontrei geladinho mais saboroso que os feitos por vovó, os industriais são artificiais e a receita secreta do deleite, ah, foi-se junto com ela.

     Havia sempre um bule com café fresquinho, um cestinho com pães, uma colherzinha dentro do açucareiro, um pires para apoiar a xícara, um bolo feito ou comprado no mercado. Havia naquela mesa de madeira retangular uma senhora de bom coração que atendia por “vó”, para quem o peso da idade tardava a chegar, a mulher sorridente, invencível, a grande rocha, o eixo que sustentava o restante da família, o ponto de ligação entre o início e o infinito.

     Era costume olhar para o relógio de parede da cozinha porque do lado dele havia o calendário do ano vigente, propaganda de algum estabelecimento comercial daquela região. Escutava as anedotas às vezes austeras, às vezes engraçadas. Nos dias de sol era hábito sentar-me em um degrau qualquer e contemplar o céu, acariciar e brincar com os cachorros e evocar as lembranças de quando eu era uma criança como aquelas que ainda brincavam na rua porque o tempo e a escolhas acabaram por afastar os corações até que eles não mais se recordassem do ritmo singular daquelas batidas, até chegar o dia em que duas antigas confidentes tornaram-se verdadeiras estranhas uma para a outra e todas aquelas promessas de amizade eterna irem pelos ares.

     Havia uma pilha de fotografias, muitas dispostas em álbuns, outras avulsas dentro de uma caixa de presentes. Naquela cama de casal nós nos sentíamos em casa e da janela dava para ver o quintal e um pouco das fronteiras além do muro. Nas mesinhas de cabeceira, cartelas de remédios. Para estabilizar a pressão, para as dores nas costas, no entanto, mesmo argumentando que do pique de outrora já não mais desfrutava, ainda assim conservava o frescor da juventude, posto que os resquícios da mulher bela que foi ainda não haviam sumido.

     A pele do rosto ainda era firme e brilhante, as ruguinhas eram aquelas inevitáveis, nos lábios um batonzinho rosa, o lápis desenhava as sobrancelhas finas e embora a briga com a balança fosse uma constante, a magreza lhe roubaria (como roubou) o charme. O cabelo estava sempre hidratado, pintado, escovado, na altura dos ombros. As lindas unhas, pintadas e bem cuidadas, os esmaltes cintilantes e também os escuros, o estojo de manicure, os diversos acessórios que utilizava, todos organizados.

     Havia sempre um bolo, um prato salgado, pés de couve, o que quer que fosse, para se levar para casa. Havia sempre um tom de lamento quando chegava a hora de ir. Havia sempre um abraço dentro da casa e outro já no portão. Havia sempre um aceno amoroso na frente da casa conforme o carro virava a esquina para pegar a estrada. Havia, no ar, o gancho para uma próxima vez.

     A mãe dela, minha bisavó, viveu mais de noventa anos e se não fosse pelo câncer, teria chegado aos 100. Se vovó continuasse naquele ritmo, seria centenária, pelo menos era o que todos pensávamos. A morte batia nas portas de outros lares e o nome dela parecia relativamente distante no pergaminho, mas como podemos nos enganar por ilusões?

     Dona Morte preparou uma emboscada para vovô e o relógio de parede parou no exato instante em que ele, do outro lado da cidade, deu o último suspiro. Após aquele dia, de fato, a rocha desmoronou. Estávamos todos tão equivocados, embora receássemos que aquilo acontecesse porque tínhamos alguma noção do quão devastadora poderia ser aquela separação forçada e inevitável, imposta pelo próprio ciclo da vida.

     A subestimada hipérbole antecipou o adeus. O cansaço abateu-se sobre ela. Onde antes havia tanta vida reinava aquele silêncio constrangido, acuado, resignado. Os móveis foram trocados de lugar, mas aquelas paredes guardavam lembranças insuperáveis e a dor da saudade era maior do que tudo. O vazio que preenchia o coração dela era grande demais para ser consolado com frases feitas.

     Receber a notícia do diagnóstico pelo telefone foi um choque. A negação blindou-me. Poderia ser um daqueles casos nos quais os médicos seriam surpreendidos com um milagre porque minha mãe orou, orou com todo o coração para que vovó fosse curada, por mais desfavorável que pudesse ser o prognóstico.

     Eu sei que estou morrendo, fia.

     A dor a consumia, roubando-lhe o apetite, o viço, a dignidade, a autonomia, o sopro de vida. A leitura da bíblia lhe trazia alento. Para um Deus capaz de tantas maravilhas por seus queridos filhos, não custaria tanto curar um tumor raro e permitir que uma boa senhora ainda pudesse conhecer, abraçar e amar a obra mais bela que construiu: a família.

     As injeções de morfina prolongavam o sofrimento com a promessa de aliviar as dores, mas o corpo enfraquecido ainda assim resistia porque todas as vezes em que a vida lhe derrubou, conheceu dentro de si a força para se reerguer e dizer em voz alta ao medo que ela era mais forte do que ele.

     Agora o próprio medo assumia uma postura mais humana na abordagem, tomava a face de seu amado e lhe sussurrava para não temer, pois a dor estava próxima de chegar ao fim, que chegava a hora de descansar. O paradoxo era mais do que um contraste, era o melhor narrador da história. Por um lado, não era justo alguém ser devorado por um tumor agressivo e perverso, triunfante por ser incurável. Por outro, a revolta pelas orações cuja resposta destoou das expectativas, a sensação gritante de impotência diante de um porquê sem explicação, a tristeza pela despedida que não aconteceu.

     Quando vovó, mesmo debilitada pelo luto, acenou para nós naquela última e emblemática visita, não disse adeus enquanto sorria e via o carro dobrar a esquina como fazia toda vida, mas as páginas da vida redigiam o texto e buscavam a melhor entonação para aquela despedida.

     Não quisemos chorar na frente de mamãe, ela estava devastada, vivendo um momento desafiador na segunda revolução de Saturno, dizendo adeus à última pessoa fora de nossa casa que a amava incondicionalmente. Tentamos transparecer que poderíamos suportar aquela grande e irreparável perda sem agigantar o já inevitável sofrimento.

     A casa da minha avó sempre foi um elemento relativamente comum em meus sonhos, hoje é ainda mais. Às vezes vejo aquele quintal verde e da casa transborda alegria, ela continua ativa e linda, há música tocando, há festa, há alegria, há confraternização, há café quentinho, há bolos saborosos na mesa da cozinha, há cachorrinhos recebendo as visitas no portão, há crianças batendo palmas para comprar geladinho, há abraços longos, sinceros, perfumados, há amor.

     Na configuração original daquele lar, os únicos degraus eram aqueles que separavam a porta da frente do quintal, mas nos meus sonhos a casa é tão grande quanto o coração dela, há vários andares, há frondosas árvores ladeando a propriedade, há velhos conhecidos deixando as rusgas de lado para retomar contato, há sorrisos, há lugar para todos, há flores-de-maio desabrochando em pleno verão, há balanços para sentir frio na barriga, não há relógio algum no pulso nem na parede, ninguém olha o celular, ninguém se importa em contar as horas, porque quando se vive um momento especial, o presente é o centro do universo e a maior de todas as dádivas.

     Só sei que é tarde quando olho a hora no decodificador e ainda meio zonza me dou conta de que apenas sonhei e enquanto ocupo as horas para não padecer à melancolia, reflito sobre tudo que gostaria de ter-lhe dito e nunca consegui, sobre o momento presente, sobre quem ainda está presente, sobre um meio de demonstrar todo o meu amor de modo a nutrir no coração a certeza de que o amor é um laço que nem a morte destrói.

     Vó, espero que o céu seja um bocadinho parecido com o que vejo nos meus sonhos, espero que esteja bem e saiba que sempre te amei e amarei. Quando nós aqui lamentamos a sua ausência, os céus festejaram a chegada de alguém especial e então você pôde dançar sem medo das limitações, reencontrar pessoas que partiram antes e tantas saudades deixaram, pôde, enfim, encontrar-se com Deus. Meu conforto se sustenta justamente nessa certeza tão firme de que Deus te acolheu bem e dia a dia renova as forças daqueles que ainda precisam prosseguir.

     Pode ser que nunca mais o carro dobre a esquina e vejamos você abrir a porta para nos receber, mas quando eu chegar aos céus espero muito encontra-la, ou melhor, reencontrá-la, para que quando nos aproximemos, tenhamos a confiança de que o tempo foi apenas um conceito relativo, uma provação para fortalecer o afeto, o caráter, porque quando esse momento chegar, terão ficado para trás também as dores, angústias e fraquezas humanas, terá chegado a hora de abraçar e regozijar e caminhar rumo a uma nova era, rumo a novos sonhos, rumo a novos desafios... porque apenas o corpo expira, nossa alma permanece porque é composta por amor e o amor nunca morre, nunca, nunca, nunca morre.

 

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 03/02/2022
Código do texto: T7443618
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