A ÚLTIMA CHAGA - Morte e renascimento
“Há mais coisas entre o céu e na terra, do que sonha a nossa vã filosofia” – William Shakespeare
Longe do intuito de querer argumentar traduções, apego-me à palavra “entre”, que sendo algo visível ou invisível aos olhos, pode representar uma conexão. Pego o corpo humano e a sua mente, e atribuo esta renomada frase dando ênfase no “entre” com o mesmo sentido, o de conexão.
Cerca de pouco mais de dez anos fiz vários exames para descobrir a origem e a causa de frequentes arritmias cardíacas. Em outras palavras, as famosas palpitações descompassadas nos batimentos cardíacos. Após uma bateria de exames realizados no coração, o médico identificou um defeito congênito no tamanho dos folhetos chamado de Prolapso na Válvula Mitral, também conhecido como PVM. Este consiste em fazer com que a válvula não consiga se fechar corretamente. Onde um folheto empurra o outro, causando o prolapso da mesma em direção ao átrio esquerdo, ocasionando desta forma, as indesejáveis arritmias cardíacas.
Curiosamente não me foi passado um remédio e nem um tratamento para este diagnóstico, mas que ao longo do tempo foi se intensificando. Certa vez em uma consulta com um antigo neurologista que acompanhava o meu quadro de ansiedade, ele fez uma observação da qual eu nunca esqueci. Relatou que a ansiedade (gerada na mente) poderia desencadear a arritmia, e esta mesma sendo ocasionado pelo PVM, poderia de igual forma desencadear a ansiedade. Resumindo, um sintoma fisiológico pode perfeitamente afetar a mente e vice-versa. Neste último caso, quando as causas dos sintomas não são detectadas por algum exame que possivelmente apontariam a causa do problema, é dito que o paciente está assintomático.
Que a mente pode afetar o corpo e este à mente, para a maioria das pessoas sei que não é novidade. Mas, devido às minhas experiências vividas, é que ressalto que algumas pessoas são mais suscetíveis do que outras, como tudo nessa vida. Faço tais relatos para a conscientização acerca da importância de se manter a mente o mais saudável possível, tal como na frase: “Mente sã, corpo são.” Os relacionamentos tóxicos que envolvem abusos físicos, mentais e psicológicos, geram na mente humana um grande desgaste, um desprendimento da energia vital, que podem provocar reações inesperadas e nunca antes imaginadas no nosso corpo.
Durante o relacionamento abusivo com Rafael, eu sentia muitas dores na área da barriga, que à princípio cogitou-se um prognóstico de diverticulite. Doença na qual eu nunca havia ouvido falar, e que consiste na inflamação de pequenas bolsas formadas no intestino. Pesquisei e achei que os sintomas eram realmente muito parecidos com os que eu estava sentindo e que poderia também ser a causa da minha anemia. Em certos momentos, lamentava estar adoecendo por conta dos excessos de estresses causados em decorrência de mais um ano desse relacionamento.
Como mencionado anteriormente, ao pisar no Rio, fui a primeira da família a contrair a Covid-19. Apenas depois de junho de 2020 que pude finalmente aos poucos começar a fazer os exames para investigar a causa da anemia. O sol quente castigava, a fraqueza desestimulava, o emocional não ajudava e a minha aparência se mantinha totalmente relaxada. Estava tentando sobreviver a um cenário apocalíptico externo e interno simultaneamente.
O ano que eu precisava emergir para tomar fôlego, impiedosamente foi o ano que eu sentia que cavava cada vez mais para baixo. E pensei em alguns momentos sim, de estar cavando a minha própria sepultura. A lentidão de tudo fazia todo o processo parecer longo e sem fim. Eu havia me arrependido extremamente de ter optado em voltar para o Rio. Até hoje penso se a opção certa, ou pelo menos, a menos desgastante, não seria a de ter ficado no Sul e tocado a minha vida sem o Rafael.
Com o resultado do exame de ultrassom feito antes da minha chegada ao Rio, a recomendação foi procurar um hematologista para investigação do baço, visto que na minha família tinha o caso de esferocitose hereditária. Muito tempo depois, tanto para conseguir a consulta e fazer os exames super bem detalhados do sangue, nada foi encontrado. Onde desta vez fui encaminhada para um profissional de gastrologia para investigar, agora sim, uma possível diverticulite.
O exame de endoscopia eu me recusei a fazer porque eu sabia que não tinha nada no meu estômago e a ideia do desconforto causado por este exame não me agradava. Porém, não pude escapar da minha primeira experiência com o exame de colonoscopia. Só a ideia de fazer este exame me torturou à mente por meses, contudo, não foi desconfortável se comparado ao seu preparatório, devido eu ter adormecido durante o procedimento. O preparatório além de ser metodicamente rigoroso, me deixava fraca por conta do jejum obrigatório e das evacuações frequentes causadas pelos medicamentos.
Depois que o resultado do exame de colonoscopia não ter apresentado nenhum problema, decidi procurar uma ginecologista, pois além de sangrar muito durante os ciclos menstruais, precisava averiguar se os cistos nos meus ovários haviam crescido. Foi então que descobri que eu tinha um mioma e que precisava operar o quanto antes. Neste período eu ainda estava no resguardo de dois meses decretado pelo médico cirurgião, o qual realizou uma hidrolipo em três regiões da minha barriga no final de março de 2021. Já que a imunidade não aumentava, pelo menos a autoestima eu precisava aumentar.
Além do que era um sonho meu eu conseguir retirar aquela bolsinha de gordura que fica abaixo do umbigo e que não sai com os exercícios de academia. Para variar, fui recriminada por alguns parentes por estar demonstrando um ato de vaidade. Mas, eu já estava na merda mesmo... O meu pensamento na época, era o de que só iria acontecer comigo o que de fato teria que acontecer. E tanto foi desta forma que no segundo mês do resguardo, eu contraí novamente covid. Desta vez, anêmica, pré-operada e na iminência de realizar outra cirurgia. Se eu estava tentando me suicidar de forma inconsciente, eu sinceramente não sei. Mas que eu já havia partido pro tudo ou nada, com certeza sim.
Infelizmente eu não pude realizar o procedimento correto de usar as cintas que são apertadíssimas durante o período em que me recuperava da covid, por conta da falta de ar e nem tão pouco realizar as sessões de drenagens após eu ter acabado de retirar um seroma de 300 ml. Posteriormente, como consequência fiquei com um outro que encapsulou e também com uma fibrose alta no lugar da bolsinha de gordura. O cirurgião disse que eu precisaria fazer uma cirurgia reparadora, mas eu decidi dar preferência à retirada do mioma desta vez, me comprometendo a voltar posteriormente para reparar os danos.
Um dos miomas existentes em meu útero estava maior do que apresentava nos exames de ultrassom e seu tamanho estava maior que o de uma laranja. Já na mesa de cirurgia fui aconselhada a fazer a retirada completa do útero. Como eu já passei dos quarenta e não desejava mais ter filhos, concordei com as opiniões dos médicos e decidi na hora da cirurgia em retirar também o útero. Hoje vejo que foi uma decisão acertada, visto que estou livre dos vastos sangramentos mensais, das oscilações de humor típicas do ciclo menstrual, das cólicas horrorosas e claro, do medo terrível que tinha de engravidar. Só quem é mãe solo, sabe o que é ser acometida por este medo.
Minha recuperação apesar de ter sido ótima, em contrapartida foi bem solitária. Operei no dia 25 de junho, dois dias antes do meu aniversário de 41 anos e recebi alta exatamente na data em que o completei. Sentia-me só e sem ninguém para conversar e compartilhar os detalhes da cirurgia. Sentia que eu não importava verdadeiramente para ninguém. Eu e Júnior praticamente não conversávamos sobre assuntos relevantes nesta época, apenas cogitávamos um possível reencontro após a minha recuperação, na qual seriam necessários mais dois meses de resguardo. Confesso que um dos motivos, entre tantos outros para eu protelar o nosso encontro, foi o fato de sentir-me envergonhada por estar com a barriga deformada.
Em meio a um rumo incerto e tentando juntar minhas forças, cogitava a ideia de até o final do ano me mudar novamente para o Sul, mas para outro Estado. A tristeza me consumia dia após dia, mas ainda assim a esperança por dias melhores e de paz com o meu filho me embalavam. Logo após a retirada do útero eu me senti oca, vazia, uma espécie de terra estéril. Senti-me tão sem forças e direção que um dia após a alta eu decidi buscar ajuda e procurei um conselheiro espiritual.
Conversando com ele e mais preocupada com a minha vida afetiva, emocional e amorosa, ele comentou algo que me fez rir. Como eu estava recém-operada a barriga doía e pedi desculpas por me queixar das dores e foi onde sem querer comentei sobre o caso da cirurgia, no qual ele muito se interessou até mais que os outros assuntos. Observava atentamente eu falar sobre o assunto e no final fez algumas ponderações, nas quais trouxeram lucidez e conforto para o meu coração. Disse que sentia que era preciso aquela operação, que fazia parte do fim de um ciclo na minha vida. Que em meu útero eu havia acumulado muitos estresses dentro de uma década e o que parecia representar infertilidade e morte aos meus olhos, na verdade simbolizava nova vida e renascimento.
Aos poucos fui me focando mais em minha vida profissional que foi onde conheci uma pessoa, na qual chamou a minha atenção pelas características, as quais batiam com as informações fornecidas por algumas “estrelas”, acerca do meu céu. Foi-me dada não apenas uma, mas várias vezes a mesma informação acerca do fechamento de um ciclo na minha vida. Que eu precisaria deixar ir o que não dava mais certo e me mover em direção ao novo. Deixar para trás e abandonar de vez por todas o que não me levava pra frente.
Então, com menos de um mês conversando com José, eu fui conhecê-lo em sua cidade que não era no Sul, mas que era no Estado natal da minha mãe. Sim, eu acho incrivelmente louca esta minha capacidade de ter mais força de vontade e motivação para viajar para outro Estado e cidade, do que ir ao mercadinho do outro lado da estrada. Á princípio era para eu ficar apenas uma semana, quando comecei a apresentar sintomas de covid... Pareceu-me ser, segundo os sintomas apresentados, a tal da variante delta que encabeçava a crista da segunda onda da pandemia aqui no Brasil. Fato que me obrigou a ficar por mais quinze dias que acabou virando um mês.
Ao retornar, Júnior, depois de dois meses sem conversarmos, me procurou pelo WhatsApp comentando algo sobre estas chagas que escrevo. Informei imediatamente a José, que abordou Júnior enviando para ele um áudio falando sobre nosso relacionamento. Ele apenas respondeu que ficássemos em paz e que não nos incomodaria. A lição havia sido duramente aprendida, pois eu não poderia cometer o mesmo erro de iniciar o relacionamento com José, tendo pendências emocionais novamente e com a mesma pessoa sempre.
Variados foram os motivos que me desmotivaram a terminar estas chagas. Tive o desprazer de pegar Covid três vezes. A primeira assim que coloquei os pés de volta no Rio de Janeiro, a segunda após a hidrolipo e a terceira quando viajei para conhecer José. Resolvi me imunizar faz cerca de um mês, visto que sem a vacina ninguém mais fará muita coisa. As dores do lado esquerdo da barriga persistem, sendo intensificadas quando me estressso.
Tive conflitos e discussões com os meus padrinhos que até o dia de hoje perduram, tendo em vista que ainda resido com eles, no aguardo da data oportuna para ir embora de vez. É verdadeiramente uma nova fase da minha vida, sem meias verdades ou histórias inacabadas. Tudo às claras... Meu filho finalmente voltará a estudar e esta é sem dúvida uma das partes que mais me trazem alegria. Ontem mesmo realizei o seu cadastro em uma escola estadual na região onde pretendo morar.
O que me deu forças durante todo este período de isolamento interno e externo, foi o fato de ter colocado em prática o início da realização de um outro sonho, sendo este na minha vida profissional. Fui ganhando espaço no ramo, estudando e aprimorando várias técnicas para o meu desenvolvimento. Fui orientada pela minha intuição a dar o primeiro passo em direção ao que eu acreditava, mesmo não tendo ainda ao meu dispor todas as ferramentas nas quais eu julgava precisar. Realmente, o mais importante de toda caminhada é dar o primeiro passo e é também o mais difícil.
E foi nessa minha busca pela nova versão de mim mesma, exercendo a duras penas o desprendimento do meu velho eu e o desapego, que em meio a estrada do meu destino apareceu José - aquele que socorre - Neste exato momento estou me mudando, desta vez mais ao norte. Que as estrelas me guiem...
(CONTINUA EM BREVE EPÍLOGO...)