Amor: do virtuoso ao miserável

Cara amiga

São Paulo, 01/11/2021

Escrevo-te após curto período, motivo, é claro, de minha empolgação em fazê-lo, mas acima de tudo da minha fortuna; é certo que o ócio do qual disponho me é proveitoso por vezes.

Inicio, pois, pela fortuna. É bem sabido, seja através de Nicolau ou por outras vozes, que esta escapa à nossa previsão. É certo, como bem sabes, que a condição humana que nos aprisiona é a consciência da nossa própria insignificância diante do universo, de modo que os eventos sobre os quais temos controle são quase irrelevantes, ainda que nos queiramos convencer do contrário. Sabes tão bem como eu, que aquilo que é conhecido por fortuna nada de novo tem, e que Nicolau, assim como outros filósofos, apenas batizou a seu modo aquilo que mentes razoáveis já conheciam.

Mas, se assim foi feito, se assim batiza-se ao filho, é para que se discorresse sobre ele com a propriedade de um pai. É por isso, pois, que pouco nos interessa o nome do filho, mas sim o próprio. Interessa-nos saber, no interior de sua filosofia, o porquê do batismo “fortuna”. Vejamos o que o pai tem a dizer sobre seu filho.

Nicolau logo nos diz, o que é inevitável, que não controlamos a fortuna. Tão logo sabemos nossa miséria, para que, portanto, dispunharíamos a nós mesmos no mundo? Para que finalidade? Ora, minha cara, pela “vertu”, como sabes. O Homem grandioso compartilha da mesma miséria que os vis, e portanto sujeito está às aleatoriedades do destino. Porém, diante da oportunidade, somente o seu possuidor é capaz de ascender da miséria, nem que seja pela brevidade cósmica mais infinitesimalmente pequena possível. Afinal, é aí que encontramos sentido nesta miséria coletiva, não achas?

Pois bem, é assim que imagino teu percurso sobre o amor, minha cara. Estás aí como qualquer miserável, navegando na aleatoriedade do destino. Mas, como percebo-te como alguém com certa "vertu", muito me espanta que queiras um amor de “cachorro”, minha cara. Desejas alguém que anseia por tua volta? Desejas alguém que te acalente quando da tua presença? Pois bem! Assim o terás no amor, minha cara! Mas se esperas que assim perdure esta relação tão curiosa que é o compartilhamento de prazeres e agonias entre duas almas, estás a cultivar o teu fracasso! Se esperas, ainda, que esta chama do acalanto se acenda sem que tu, de tua parte, atires a primeira fagulha, ou que pelo menos comece a procurá-la, estás em desengano, minha amiga! Não há nada de errado com tua besta, minha cara! Errada estás tu, que esperas do Homem que este volte ao estágio anterior de evolução. Esperas do Homem que ele ignore sua própria humanidade? Esperas do Homem que ele cultive o amor sendo este, do modo que consubstancias, estranho à humanidade? Que benefício extrairias tu, portanto o Homem, de algo antinatural? De algo não humano?

Pois bem, é certo que o indivíduo que encontra o amor possui a fortuna; mas é ainda mais certo que só é capaz de mantê-lo aquele que possui a “vertu”. Espero, pois, que não te preocupes quanto ao tempo que precisas para achá-lo; mas que jamais acredites que a sua busca não necessita esforço de tua parte, antes mesmo que o aches. Donde, se procuras ver a semelhança do amor de um Homem à de um cachorro, pode ser que deixes passar a chance que a fortuna venha a te oferecer.

Seu estimado amigo,

Milton

Milton Pessoa de Andrade
Enviado por Milton Pessoa de Andrade em 30/11/2021
Código do texto: T7396909
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