A ÚLTIMA CHAGA - Carta de repúdio

Não há forças em mim para continuar rememorando o velho. A luz se fez ainda mais luz tal como o clarão do meio-dia, convidando-me a sair. Odre novo precisa receber vinho novo e é imprudente remendar tecido novo ao velho. Meu quarto escuro nunca foi meu. Habitei-o, porém, com esforço, nunca permiti que ele habitasse em mim. Optei então, aproveitar o raro fenômeno e escancarar de uma vez por todas as janelas.

As chagas já eram para terem sido encerradas faz tempo. Na verdade, quando as iniciei, pretendia terminá-las num prazo máximo de três meses. Gostaria de ter sido fiel ao seguimento a que me propus, mas houve muitas intercorrências e hoje as circunstâncias são outras... Refiro-me tanto a demanda do tempo quanto aos títulos. A roda girou e o velho não cabe mais em mim e a mim não cabe forçar tal ato. Se no tempo que me foi concedido eu não consegui reunir a força necessária, não será agora fora do meu tempo que empunharei o punhal nas feridas cicatrizadas(?)

Nesta parte da história era para serem apresentados os últimos diálogos entre mim e Júnior, quando o desbloqueei no meu WhatsApp no início de dezembro do ano passado, tendo sido a nossa última conversa por volta de setembro do mesmo ano. Romantizar um pouco a dor (quem sabe), apresentar os argumentos utilizados por ambos e deixar o leitor refletindo sobre quem teria mais razão. Antes, eu pensava que precisava ter razão para sentir paz, hoje eu só preciso sentir a paz, independentemente de estar ou não com a razão. O título será mantido a fim de que seja preservada a essência das chagas, mas não haverá os diálogos e tão pouco os repúdios contidos nos mesmos.

Já desabafei o tanto que pude, coloquei para fora os abusos psicológicos por mim sofridos desde 2015 e eu disse a Júnior que ele seria a minha última chaga. Não que ele fizesse parte deste grupo de homens, que terminou em Rafael, mas o último do fim de um ciclo vicioso de relacionamentos amorosos malsucedidos em minha vida.

Para quem acredita em misticismo, é dito que a cada sete anos, o ser humano finda um ciclo na sua vida para começar outro. Cabe ao mesmo optar por ficar numa espiral de repetições, ações e atitudes ou quebrar de uma vez por todas o elo mais forte da corrente que o prende a esta espiral. Confesso, não é nada fácil... Aliás, o que é fácil quando o esforço é voltado para a liberdade? E ainda, seria a ideia de liberdade uma realidade ou outra ilusão criada pelas nossas mentes? Gostaria de apresentar mais respostas do que perguntas, mas ainda assim prefiro questionar, do que às cegas seguir aos cegos.

No futuro pretendo com este trabalho, retirar elementos que auxiliem às pessoas que sofrem abusos em seus relacionamentos, não só os ditos amorosos, mas também familiares. E ajudar as outras a identificar quando são ou estão sendo abusadoras, pois muitas o são e sabem, mas não admitem.

Faz dez anos que me apeguei ao sonho de viver na minha casinha branca juntamente com meu filho e o companheiro ideal. Em meio a este processo tive que escolher entre somente o sonho da casinha branca e meu filho ou o companheiro ideal. Sim, a vida brinca... E só depois de voltar para o meu antigo quarto escuro no qual jurei nunca mais voltar, foi que então decidi entrar na ciranda. E cirandar com a vida, mas nunca com a vida das outras pessoas.

A vida me trouxe as respostas que eu precisava. A vida nos dá o tempo todo as respostas que precisamos, mas que dificilmente queremos aceitar. A desilusão faz parte do processo daquele que se ilude e eu também me iludi. De fato, em determinadas ocasiões é melhor aceitar para doer menos. E doeu resistir à ideia de cair de volta no antigo quarto escuro, porque não mantive firme os meus passos. O que não flui, infla. Se o rio não cumpre o seu propósito de se tornar oceano, que ele não saia então na fonte.

Fiquei com as coisas boas que vi em minha mente ao mudar de estado e desejei ver ainda melhores. O sonho de antes, agora virou propósito sem idealismo. Em outras palavras, parei de sonhar e acordei. Voltando para a casa dos meu padrinhos e eles sentindo a minha resistência para ficar, não mediram esforços para me convencer a comprar uma casa para mim aqui. Para que eu iria me prender a um financiamento “ad infinitum” para adquirir uma casa e ficar presa a um único lugar? Por que não pegar o dinheiro deste financiamento e ir morar de aluguel onde meu coração almejasse? Para que ficar presa se o trabalho para mim não era um empecilho para fazer qualquer movimento? E somente então, quando decidi que o céu seria o meu teto, a relva o meu piso e o mundo o meu lar e a minha casa, que pude enfim obter uma parcela de paz e aquietar o meu coração.

Quando finalmente soltei o sonho da casinha branca, e exerci o desapego foi que o raio caiu sobre a torre, fazendo-a desmoronar por completo. Uma torre repleta de ilusões, sonhos e ciclos. Com a morte vem o renascimento, ainda que seja a morte de um sonho... Não sei afirmar se de fato os sonhos morrem, mas posso garantir que sonhos acordam.

Cada um tem suas próprias razões internas para lutar por algo que acredita ou que acha valer a pena. Contudo, eu não poderia prosseguir com uma pessoa que ainda desenhava seus demônios internos em um diário secreto, ao invés de compartilhá-los comigo. Por mais que a química da relação a meu ver fosse muito boa, outras vidas dependiam das nossas vidas. A família de Júnior, dele sem mim e o futuro do meu filho sem ele.

Eu enxerguei isso logo assim que o pai de Júnior veio a falecer. Se fui egoísta ou não, se pensei só em mim e no meu filho ou não... No fundo essa era ideia. Pensar em mim e no meu filho e sim, ser egoísta quando todos ao meu redor só sabiam ser isto. Para ser mais transparente, na verdade, na superfície essa era a ideia, pois no fundo eu ainda tinha sentimentos fortes por Júnior, desejando apenas não mais nutri-los. Acontece que uma pessoa intensa e profunda como eu, tende a viver de forma tensa na superfície.

Não adianta... Sempre haverá alguém para apontar a forma com a qual resolvemos encarar nossos problemas ou viver as nossas vidas. Isso me faz lembrar a ilustração de um homem, uma mulher e uma criança que andavam sobre um burrinho. Os mesmos a cada lugar que passavam eram julgados de maneira diferenciada por pessoas diferentes, as quais não sabiam os motivos que levavam aquela família a caminhar da forma que caminhavam. As pessoas eram meros ecos.

Para quem não conhece, a estória consiste em um casal e seu filho com cerca de dez anos de idade que viajavam sobre um burrinho. Ao passarem por um lugar foram chamados de covardes por estarem judiando do animalzinho. O casal teve a iniciativa de descer, deixando apenas o menino que logo à frente, foi chamando de moleque mal-educado, por deixar seus pais já de certa idade andando a pé, enquanto o mesmo estava no “bem bom”.

Para que fossem evitadas as críticas negativas contra o filho, o desceram e subiu o homem. Chegando à cidade seguinte foi chamado de descarado por deixar a mulher e a criança caminhando a pé, puxando o burrinho. Trocando de lugar, ela sentada no burrinho e ele caminhando a pé com a criança, mais à frente a mulher foi taxada de abusada por deixar um trabalhador caminhando e de mãe desalmada por conta do filho que também ia a pé.

No intuito de evitarem mais críticas, tomaram a decisão de todos os três subirem no burrinho e quem sabe conseguirem fazer uma viagem em paz. Mas não houve jeito... Foram xingados de estúpidos, inclusive, de que eram ainda mais estúpidos que o próprio burrinho que os levava.

Resolveram assim caminhar os três a pé e aliviar o animalzinho. E quando todos já tinham passado por tantas críticas, acharam que finalmente não seriam mais taxados de algo. Mas, se enganaram... Ao passarem ainda por outro lugar foram zombados, sendo chamados de idiotas e de burros por estarem caminhando a pé, tendo um burrinho para montar. Sem acreditar naquilo e já cansada de tantas ofensas, não importando o esforço das mudanças feitas ao longo de todo o trajeto, a mulher ironizou perguntando se não seria a melhor alternativa, que eles mesmos levassem o burrinho nas costas.

Nada reflete melhor a nossa longa trajetória por esta vida tão passageira. Ninguém precisa saber do que passamos para nos julgar e pior ainda é quando sabem, e ainda assim nos julgam como os demais. Muitas são as pessoas que se pegam cometendo atitudes surreais porque resolveram dar ouvidos aos que nunca caminharam uma só milha com os seus sapatos. Fico imaginando se a família de fato resolvesse tomar a atitude de carregar o burrinho. Como se não bastasse o fardo das palavras, terminariam sua trajetória carregando literalmente um fardo totalmente desnecessário, apenas para que não fossem alvos das críticas alheias. Digo que esta caminhada é solitária, mas também criei a lucidez necessária para afirmar que não precisa ser estéril. As sementes foram lançadas, os maus frutos foram colhidos assim como os bons também estão sendo.

É por este mesmo exemplo que nunca aceitei as críticas de Yago, amigo de Júnior, proferidas a mim quando não compareci ao enterro do pai do seu melhor amigo. Ele pode ter desempenhado o papel de melhor amigo, mas nunca que eu aceitaria que desempenhasse o papel de ser meu juiz. Um rapaz que não tem filhos, que sequer conhece as dificuldades de se criar um filho sozinho e tão pouco foi exemplo de bom marido porque não conseguia esquecer a ex-namorada enquanto vivia com a atual. Atual que também virou ex porque foi traída pelo homem-exemplo-símbolo-da-perfeição. Não havia moral e nem exemplo de conduta, mas sobravam dedos para serem apontados e uma energia aflorada de imperador.

Hoje não me vem mais ao caso, mas eu posso enxergar com mais clareza e admitir que a partir do momento em que eu decidi seguir com Rafael, eu realmente deveria ter desfeito de vez todos os laços com Júnior. Ainda que Rafael fosse problemático o suficiente para inventar ou criar mais coisas para sabotar a nossa relação, visto que o problema dele era dele com ele mesmo. Se eu tinha optado pelo sonho da casa, tinha que abrir mão sim, do sonho do amor, visto que estas eram as cartas impostas na mesa. Mas, tem uma frase de um filósofo na qual diz: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.”

Tudo só veio para me reforçar a ideia de que tanto no fundo quanto na superfície já sabemos de algo, só demoramos para admitir. Uns mais... Outros menos... E depois de pouco mais de um ano durante a minha estadia involuntária tanto no Rio de Janeiro, quanto na casa dos meus padrinhos, finalmente eu descobri o motivo da minha anemia...

(Continua...)

Anne Jansen
Enviado por Anne Jansen em 19/11/2021
Reeditado em 21/11/2021
Código do texto: T7389555
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