Carta para um eu retrógrado (criança)
Olá eu retrógrado,
Assisti recentemente uma série, “Loki” (2021), falava sobre “variantes temporais”. Fiquei pensando em minhas variantes temporais vividas e perdidas na linha do tempo. Lembrei de você. Recordei o cheiro e o sabor de outros tempos. Senti dores, confesso. Então não resisti; e aqui com meus olhos ardendo, devido a 4 graus de miopia que desenvolvemos, e o coração com sensações de quem que se perdendo, encontrou-se, atrevo-me a descortinar o amargo véu de meu passado e a você escrever.
Superamos muitas coisas, sobretudo porque aprendemos a nos defender. Superemos muitíssimos medos, apesar de muitos ainda continuam presentes, feridas nunca cicatrizadas. Mas o que seria de nós sem dores, sem paixões, sem devaneios, delírios, labirintos, confusões? Não tenho mais medo de alma como tu, no entanto certas pessoas vivas me apavoram. Perdi o medo da timidez de falar em público, carrego o fardo de ainda zelar por expectativas alheias. Continuo com muito medo de viajar de avião, ainda com a mesma certeza de que ele cairá. Ainda sonho com isso, pesados. (risos) Enfim, descobri que os medos fazem parte da vida da gente, é que a realidade tende a ser horrorosa. Percebo que os teus medos eram tão inocentes e doces e coloridos. Quem dera meu único medo fosse altura, a tomada da consciência das coisas é chocante. Êê, fica no teu tempo, menino, e volta a sorrir nas águas do teu açude.
É sempre assim... voltar ao passado me deixa de imediato contente e na medida em que as lembranças vão ascendendo a melancolia vai aparecendo. E é paradoxal, eu-criança, porque escrevendo para você, estou escrevendo para mim mesmo, de ontem, de antes de ontem e de hoje. Fico confuso e preocupado com a coesão do texto. Acho importante dizer isso a você, para que saiba que continuamos com o mesmo gosto por leitura e escrita. Hoje leio bem mais, no entanto negaram a nossa originalidade literária, impuseram outra perspectiva da escrita, empurraram modelos prontos, sobrecarregaram o tempo criativo nosso com infindáveis trabalhos, como se fosse uma educação bancária. Eu sinto que prenderam a minha criatividade. Na tua idade, escrevia tantos cordéis, poemas, crônicas, contos. Hoje nada sai. Nada brota. Tudo em ti era sobre amor, amizade, amor, família, amor, comunidade, amor. Hoje não tem muito de antes, mas eu sei o que é interseccionalidade, confluência de saberes, contra-colonialidade, luta de classes. Agora eu sou letrado. Até me respeitam! Não duvidam mais!
Eu quero encerrar, pensei mais do que escrevi, passado é complicado, cansei a alma!
Quem sabe um dia, perdido cosmicamente na linha temporal das existências, eu te (re)encontre.
Whallison Rodrigues Gomes,
Pentecoste-Ce, 28 de outubro de 2021.