CARTA I - DO DIÁRIO DE CHARLOTTE DE WANTUIL - UMA CONDESSA OBSTINADA
Charlotte de Wantuil mais conhecida como Condessa de Wantuil foi uma mulher à frente de seu tempo. Nascida em Marselha, na França, às margens do Mar Mediterrâneo no ano de 1810, ousou desafiar as convenções da sociedade da época, entregando-se a um amor profundo e arrebatador na figura do Marquês Pierre de La Rochester. Viveu uma vida de aparências ao lado do marido. Guardava dentro de si um desejo de experimentar uma vida mais livre sem as amarras da moralidade social. Amaldiçoou até o fim o destino por tê-la colocado nas mãos do Conde de Wantuil, usada como moeda de troca para salvar os pais da ruína financeira. Romântica e dada a rompantes intempestivos, sempre sonhou encontrar um amor de verdade. Tinha talento para compor versos e cartas e possuía bom nível cultural para uma moça do século XIX. Deixou um diário encontrado no ano de 1950 em um cofre antigo arrematado em leilão na mesma cidade em que nascera.
Abaixo uma carta pertencente ao diário da Condessa.
Marselha, 02 de setembro de 18**.
Mon cher ami:
Há dias vossa Comtesse s’encontra prostrada neste leito febril. Vossa ausência tem-me feito desejar constantemente as trevas e a escuridão como bálsamos para as minhas chagas. Oh, perdoai-me por estes pensamentos tão hediondos quando possuo o bem mais precioso que poderia almejar dentro desta cela em que m’encontro: o vosso amour. Quisera eu, mon ami, poder libertar-me desse peso morto que carrego sobre meus dorsos há três malditos anos. Poder viver com plenitude cada segundo dos laços que nos atam um ao outro sem experimentar o terrível desassossego que se apossa de mim quando m’encontro entre os vossos lençóis.
Oh, quantas vezes me apanho pedindo pela morte daquele que se interpõe entre o nosso amour. Por vezes imploro a Dieu para que ele sofra um mal súbito e alivie o peso desse fardo que me comprime o peito. Sei que blasfemo contra Aquele que rege nossos destinos, tornando-me deveras cruel e insensível. Mas, o que posso fazer quando já não vejo outra saída para qu’enfim possamos desfrutar aquilo que é nosso por direito?
Perdoe esses delírios desconexos de vossa moribunda que já não tem mais forças para lutar contr’aquilo que os Céus determinaram para ela. Ah, não pensas (não pensais), mon ami, que é fácil para eu achar-me nest’alcova sem poder sentir ao menos vossa mão para acariciar meus sofrimentos. Sem ouvir ao menos a vossa voz para acalentar meu sono desencontrado. Sem vislumbrar ao menos o lume dos vossos olhos em meus devaneios para reanimar minhas esperanças fluídas.
Há momentos, mon ami, em que tudo se torna tão desolador dentro de mim, que chego a afagar com mil afetos a ideia de ceifar meu corpo e esperar-vos em algum lugar qualquer onde não haja ninguém além de nós dois. Um lugar onde possamos enfim descansar nosso amor em um sepulcro de flores e regá-lo com a água pura das virtudes.
Mas sei que devo ainda permanecer aqui junto a vós e não desistir jamais de um dia poder exibir a felicidade que vós tão bem soubestes demarcar em minh’alma fatigada. Por isso, vos peço, orai por mim e tenhai um pouco de compaixão por vossa Comtesse. Não, não venhais até mim. Sabeis que é deveras perigoso neste momento. Assim que estiver convalescida e na expectativa de ver-vos o mais brevemente possível mando avisar-vos, mon ami.
Com afeto da vossa muito estimada,
C. de W.