Passagem de carta endereçada a um amigo

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Faz um tanto de tempo que não nos dizemos longamente. Contamos dalguns acasos dali e daqui, sem que mais muito se discorra ou se lance. Dá nos olhos que, por vezes, te ofereci mostrar no que me venho empenhado, mas nada mais que palavras de crédito se oferecem. Gostaria de fazer uma apologia, que seria algo como não te querer lendo ou sabendo do que fiz pela metade, isto é, pedir por favores por onde já tenho débito. Mas não digas que perdi a vergonha na cara, que a tenho quase toda e em boa saúde, minha cúmplice em meus atrasos e minha palavra performática.

Bem! Deixa repetir que faço muito pela metade, e que, disto, já fiz erguerem-se ao menos duas colunas por Gibraltar, e por lá ainda passam marinheiros e mareados que me acenam. Assim, assumo: das que são belas artes, a minha constrói as belas metades. Fiquemos por isto, que não deves ainda ter o mal costume de ouvir homens velhos pedindo desculpas.

Tudo disto dito, venho te apresentar as minhas belas metades, que, sobretudo, exigem dos homens apenas meio ouvidos, um olho entreaberto e uns momentos de coração preguiçoso, para que não os tenha mui gastos. Também te digo, sim, de como estive e já te dou os detalhes. Sou agora um artista em tempo integral, quando tempo integral não quer dizer do trabalho que me toma um quarto de dia e o sono contra quem declarei guerra e armistício de três à cinco horas por dia. No mais, quando não desenho, escrevo; quando não os faço, musico. Das pequenas, tive uma da qual contei faz algum tempo, mas terminamos uns meses depois. Não me queria bem perto dela, parecia me interromper as Artes. Aliás, tudo por agora parece querer estar em nosso caminho. Pudera eu deixar de comer ou dormir para simplesmente me sentar frente ao Belo e incarná-Lo em música, texto ou qualquer outro destes ícones de ouro e ter-Lhe religião! Mas, por ora, ainda não sou eterno.

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Porque escrevo livros tão pela metade:

Duas faculdades me vêm por estes anos, a da que escreve meus ensaios e a que me dá fantasias. Não as distingo bem, mas já que trabalham com tanta vontade, enquanto durmo e não as posso sequer cumprimentar, tomei-as em nome por minhas e as digo musas e suas novilhas, minhas obras “literárias”.

Sabes que escrevo a meu modo e conheces minha arte da metade, não te engano se digo que o que te chega é qualquer coisa, senão imperfeição, isto é, incompletude. Mas, de ensaios, recolhi algumas ideias de dentro do Palatini e fiz uma nova obra, mais sucinta e mais maçante, diria. Lia Kant, por estranha afinidade, e isto me curvou de um modo peculiar sobre o texto. Chamei-o de A Geomancia das Potências, o que mostra que não perdi todo o meu bom humor.

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Para que não te confundas com ele, faço a pior coisa possível: o explico e o expando para onde ele não chegou a ir.

A Geomancia das Potências deveria vir a tratar de uma leitura essencialista da Arte, baseando-a em dois eixos: a espetacularidade e a propriedade da obra. A espetacularidade trata de todo adjunto artístico. Nas artes mais antigas, como no Drama, em geral, e isto já vem de Aristóteles, o que se dá por objeto é o motivo humano, isto é, o Drama tem por propriedade seu conjunto de atos, enquanto conjuntos, claro, para que não se trate apenas de uma declaração de fatos. Ademais, em atos humanos ou humanizados, chegando a alguma razão e corrente de atos. Em outras palavras, seria uma narrativa a partir das ações. Isto sendo, uma peça de teatro não é, propriamente falando, mais do que representam os atores em suas ações, então, tudo aquilo usado para exagerar ou florear estas ações é o que chamamos de aspectos espetaculares. Uma peça não precisa de falas, nem música, iluminação, vestuário etc., os quais são aspectos usados para o bem da plateia. Não digo, no entanto, que sejam indesejáveis, apenas, irrelevantes quanto à leitura pura do Drama. Na Música, a espetacularidade se dá na palavra, na arritmia, e até mesmo nas partes que consideraríamos as mais finas complexidades desta arte, como as alturas, que fazem as melodias, ou suas relações, que fazem a harmonia.

Sei que é algo um pouco duro de se tomar, mas, de novo, não estou dizendo que os adjuntos espetaculares não são excitantes, ou mesmo incríveis como podem se dar, apenas que não são próprios da Arte, servem à plateia, como fantasmas gritando para fazer com que o público concentre-se no ato. Deste modo, além mais, a espetacularidade é essencial a quem não tem a capacidade de se dar à admiração. Por vezes, uns dizem contra músicas por não terem letra, ou contra discursos por não serem bem orados, sendo que tanto a Música quanto a Poesia e a Razão e a Oratória são artes capazes de independência. Parece algo que vem unindo-se através do tempo, como em artes universais, o Cinema e similares, mas, em certa época, a Poesia se viu quase livre da Música, quando perdeu sua instrumentação, então seu canto, e hoje perde sua rítmica dura por versos cada vez mais livres.

Sabendo-se que a Arte é escrutinável, se afirmo algo reto, esta também ganharia capacidades compositoras. Mas o ponto que mais lateja neste estudo e nesta proposta é poder, ultimamente, livrarmos a Arte, como um todo, da necessidade claudicante da Estética, dos sentidos e prazeres, e da Moral. Seria a continuação daquilo que havia prometido, dizer contra a arte como ela tem se dado, já que a vejo mal julgada por sensações pequenas ou por narrativas de conduta, o que nunca me pareceu artístico. Mas sabes como sou, — um religioso da Arte.

O outro ponto seria ver o artista como um ser ressuscitado, para longe da subserviência moral. Para um lugar onde ele se consideraria livre para ter sua arte de quaisquer formas, e optar ele mesmo se a quer servindo a qualquer outro propósito, senão à beleza, deliberadamente. Doutra forma, a Arte não passa de “artesanato” e perde seu fio, o que tratei no texto [descrito em outro momento]já em seu início.

Depois, atos cumpridos sob a vontade do artista seriam em visão do que lhe é belo. Um homem, desta forma, agiria com a vontade pura de si, dedicando-se com clareza ou mesmo se enturvando quando assim visse necessário. Remover-se-ia uma grande amarra de nossas mãos.

Uma Arte nova, vista deste modo é para além do que podemos apontar hoje. Tudo seria considerado artístico e passível de potencialização. A potencialização em si se tornaria uma forma de ser completa. Homens que viveriam em prol somente do incrível e do sublime. Os que se dedicam à Ciência fariam por ela e não por um bem maior; os homens de religião fariam por seu divino e não por um bem divino; e nós, artistas, finalmente passaríamos a dizer que nos damos à Arte, não porque nos faz sentir bem, não porque muda o mundo para o melhor moral, mas porque é Ela e porque somos nós.

Por fim, não te envio meus romances, estão demais meninas para verem a luz do dia ainda, e, como agora estou para a Música, eles terão de esperar.

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De teu antigo amigo,

Henrique.

H Reis
Enviado por H Reis em 09/09/2021
Reeditado em 09/09/2021
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