A ÚLTIMA CHAGA - Sofrendo as consequências

O lado bom de um trauma, além de que às duras custas, podemos aprender com ele e adquirir experiência, é o fato de que se ele não passa totalmente, pelo menos ameniza com o tempo. Uma das consequências deste, certamente não é esquecer a dor e nem o que foi vivido, e sim, não mais lembrar porque não faz mais parte do momento presente. Agora mesmo preciso fazer um esforço para puxar na memória os fatos ocorridos, visto que os detalhes a mim se tornaram escassos, são inofensivos e descartáveis borrões.

Há uma frase que diz que recordar é viver, e outra ainda, que reviver é viver duas vezes. Antes, no início destas chagas, comecei como um duro desabafo, mas me comprometi comigo mesma, a árdua tarefa de encerrar em definitivo, um ciclo repetitivo de acontecimentos ruins na minha vida. Eis-me aqui... Se antes reviver a dor causada era o motivo da minha desmotivação em escrever tais chagas, hoje a desmotivação é ter que puxar na memória o que não faço mais questão de lembrar. Porém, preciso descrever aqui, pois futuramente este trabalho será proveitoso e de alento para outras pessoas e em sua maioria, mulheres que passam por situações semelhantes e sofrem desse grande mal, que é o abuso em seus relacionamentos amorosos.

Já estando no Rio de Janeiro, continuei passando como nas férias de julho, pelo desconforto de ficar dormindo ou na sala da casa dos meus padrinhos, ou no quarto do meu sobrinho na casa de cima da minha irmã. Visto que a minha sobrinha ainda estava morando no meu antigo quarto juntamente com a sua filha pequena, devido a diversificados motivos.

Fui eu colocar a mão na massa para ajudá-la a ir logo para a sua casa, e não era nem só pelo fato para eu ter um lugar melhor onde me acomodar, mas porque ela também reclamava que já não aguentava mais as intromissões dos meus padrinhos na criação da sua filha. E lógico, com as inúmeras fofocas que são advindas dos que mais se intrometem dando opinião nas vidas alheias e sendo estes os que menos fazem alguma coisa para ajudar. Essa parte eu já havia passado quando morava com os meus padrinhos e era neste sentido onde residia o meu maior receio em ter que voltar a morar com eles.

Rafael insistia dia e noite para falar comigo, mas eu estava extremamente esgotada em todos os sentidos. Chorava horrores para que eu voltasse, sempre com as promessas de que ele mudaria e confesso que como o de costume eu sentia pena dele nessas horas. Meu grande mal sempre foi sentir compaixão pelas pessoas quando as mesmas não sentiam o mesmo por mim. E eu sempre gravava todas as conversas para caso houvesse algum tipo de ameaça, já que depois ele desmentia tudo e ficava a palavra dele contra a minha. Uma relação extremamente tóxica, sem nenhuma confiança, de apego, desrespeitos e abusos emocionais frequentes.

Com Júnior a gente se falava praticamente todos os dias, às vezes, sem saber como solucionar as coisas e muito confusa sobre que decisão tomar. Eu finalmente fui falando a verdade para ele aos poucos, e pedia em alguns momentos para que ele me esquecesse, que a gente não ia dar certo, e que não via como haveria um futuro para nós. Chorávamos, ele ainda assim do jeito que podia, tentava me dar algum suporte e apoio, ou ideias de como solucionar. Júnior só queria que eu não voltasse e eu também não queria voltar, mas também repudiava a ideia de voltar a conviver com os meus padrinhos. Eu estava em um mato sem cachorro.

Por volta de março eu não percebi que meu WhatsApp havia desinstalado sozinho, pois a memória do meu celular estava muito cheia. Quando dei por mim, e reinstalei, Rafael havia me ligado umas 135 vezes. Estava desesperado, e enviou a foto de um lindo quadro que estava pintando para mim. Brigamos para variar, pois eu disse que queria paz na minha vida e isso era algo que ele não poderia me dar. Depois da briga ele me bloqueou por cinco dias e estranhei o tempo de bloqueio que geralmente não passava de uma noite. Mentalmente mais descansada depois desses cinco dias sem contato com ele e também preocupada com as minhas coisas, entrei em contato com ele pelo WhatsApp do meu filho.

Ele me desbloqueou e aparentemente estávamos mais calmos um com o outro e eu estranhei aquilo tudo. Até que ele disse que estava conversando com aquela mulher da igreja, na qual ele havia mencionado que ficava olhando para ele durante os cultos. Mas se dizia confuso, pois sentia como se estivesse traindo a ele mesmo. Posteriormente, descobri pela Lena que ele havia voltado a beber cerveja com álcool e por outra pessoa de lá, que ele já estava saindo de carro com essa mulher. Segundo ele, ela tinha a mesma idade que ele e uma filha da idade do meu filho.

Com o tempo ele foi me evitando, me ignorando e isso começou a me deixar irritada, pois para me perturbar durante anos ele não poupou esforços e nem tempo, mas para mandar fotos das minhas coisas ou abrir a câmera para eu ver que estava tudo certinho, ele não cooperava. No mínimo naquela altura ela já estava frequentando a casa, e com a mãe dele novamente lá dentro, certamente estava sendo influenciado por ela. Juntamente pela sua irmã Vera que havia voltado da Itália e que estava furiosa comigo porque havia cortado a comunicação com todos.

Já sabendo que ficaria no Rio de Janeiro, com muito pesar matriculei meu filho em uma escola particular no Rio e esse foi com certeza um dos momentos mais difíceis para mim e que me fez desabar. Fazia parte do meu sonho ver o meu filho ir para o próximo ano em uma escola pública de lá que havia sido inaugurada e que tinha uma qualidade de ensino excelente. As duas escolas públicas do lugar onde eu ia morar, não tinham condições de eu ficar tranquila, visto que a maioria das crianças ou eram filhos de milicianos ou de bandidos.

Voltei a passar a suportar esse calor no qual eu já havia desacostumado para levar e pegar o meu filho no colégio. Até que pelo meio de maio, as aulas passaram a ser virtuais por conta do Covid-19. Um bom valor investido em uniformes que ele não usaria e não usou, materiais comprados para o uso em sala de aula que não foram usados e várias outras séries de frustrações e gastos.

Depois de tanto pesquisar por fretes mais em conta, ainda assim paguei um valor considerável para fretar as minhas coisas, que já estavam todas do lado de fora da casa há pelo menos um mês. Ironicamente, na mesma varanda que eu havia enviado o dinheiro para que fosse construída e que eu havia deixado armada a minha rede de balanço. Rede esta que inclusive e ele deixou um monte de pessoas balançar, inclusive, a filha da nova namorada dele. Eu sei porque faziam questão de postar no facebook para me provocar. O meu sonho da casinha branca com uma varanda e uma rede estava sendo maculado.

Minha mudança chegou no início de junho. Foi triste receber as minhas coisas, foi triste eu novamente me mudar, foi triste abrir cada embalagem e rever minhas coisas sem ter espaço para alocá-las. Ver os presentes que haviam deixado para mim e tantas outras coisas. Ao mesmo tempo que me senti aliviada ao ter minhas coisas de volta, eu sentia um enorme sentimento de derrota, de vazio, de fracasso e de culpa. Este foi outro momento em que desabei. Dois dias antes foi a última vez que eu e Rafael nos falamos e brigamos para variar, pois eu fazia questão da bicicleta que ele havia me vendido por 150 reais para salvar o celular dele. Achei um abuso da parte dele que havia emprestado para uma sobrinha dele ir trabalhar. Eu o fiz buscar, pois eu estava com raiva. Depois da mudança estando toda no caminhão, ele me bloqueou e nunca mais nos falamos.

Com a imunidade baixa por conta da anemia, eu fui a primeira a pegar covid na família. Eu estava com a cabeça tão ruim que esqueci de pagar um boleto de um bom plano de saúde do meu filho que ele tinha há dez anos e o plano foi cancelado. Tentei de todas as formas conseguir reativar, mas não consegui. Com a pandemia circulando meu filho estava desamparado caso viesse a ficar doente e era culpa sobre culpa em cima de mim. Mais uma consequência, outro desabo.

Eu dormia, só queria dormir e confesso que tinha dias que preferia não acordar mais. Estava de volta ao meu antigo quarto escuro, no qual escrevi aqui sobre ele sob o título: “Quarto escuro, todo mundo tem o seu?”. Os dias literalmente passavam por mim, pois eu não tinha ânimo para nada, principalmente depois do meu aniversário de 40 anos que foi em junho daquele mesmo ano. Foi uma bela comemoração, mas depois, meu mundo só ia desmoronando tanto por dentro quanto por fora.

Queria ir embora da casa dos meus padrinhos no final daquele ano de 2020, mas eu não tinha nenhuma condição, pois além de não ter uma estrutura psicológica ainda, eu tinha que investigar a causa da minha anemia. No auge da covid, as consultas eram impossíveis de serem realizadas, o que só gerava mais uma preocupação e frustração na minha cota de ansiedade. Tive vários momentos de ficar intensamente deprimida, mas tenho a convicção que jamais voltei a ter depressão depois que tive o meu filho. Contudo, meu humor estava péssimo, estava reativa a tudo e a todos. O sangue me fervia nas veias e eu sentia ódio dos meus familiares, raiva de mim e revolta com quase todos.

Um dos meus últimos sorrisos e aparições foi no início de outubro no aniversário de 22 anos do meu afilhado. Com as restrições da pandemia menos rigorosas, fomos à uma churrascaria, e depois disso só me lembro de com muito custo ir dar um abraço no meu sobrinho, no seu aniversário de 6 anos em outubro. Depois disso eu esqueci as redes sociais, as fotos, a minha aparência. Eu estava nocauteada e de cara na lona.

Eu e Júnior só conversávamos por telefone, mas a nossa relação continuava sendo mais do mesmo, ou seja, preso ao seu trabalho e às responsabilidades com a sua família, a qual eu jamais também faria parte. Tentamos voltar e chegamos a cogitar algo para o futuro, inclusive, de irmos para Curitiba. Cheguei a escrever uma carta sobre o meu cansaço, sobre a perda da esperança em ter dias melhores com ele, sem ele ou sozinha. Está sob o título de "HEAVEN 2"

Por volta de setembro tivemos mais um entre tantos outros dias desgastantes. Ele com os problemas dele e eu com os meus. Até que pela madrugada terminamos uma conversa arrastada como as que estávamos tendo e decidi bloqueá-lo no WhatsApp. Não chegou a ser uma decisão impulsiva, mas também não foi premeditada. Foi um pouco das duas coisas. Eu precisava de um suporte que ele não podia me dar e mais uma vez eu precisaria de espaço para trabalhar sozinha a minha resiliência.

Rafael, já tendo assumido o relacionamento com a sua atual namorada em seu facebook, eu pude ver que em agosto, a sua mãe havia falecido. Não tive sentimento nenhum. Nem de alegria e nem de tristeza. Na verdade, eu só conseguia pensar que ela havia vencido. Conseguiu morrer em paz na sua casa, vendo o seu filho com a mulher ideal e eu com a minha vida de pernas totalmente para o ar e morando em um lugar que havia jurado que não voltaria mais.

Quando foi em dezembro e com a cabeça mais descansada e de ter enfrentado vários dos meus demônios internos, eu senti falta do Júnior e decidi desbloqueá-lo no WhatsApp. Lógico que eu não esperava receber flores, mas o nosso término definitivo viria depois de uma sucessiva série de palavras de repúdio vindas de ambas as partes...

(Continua...)