A ÚLTIMA CHAGA - A soma de todos os desafetos

A busca por respostas nos impele, a demora delas nos desorienta e um bombardeio delas apresentadas de uma forma não tão desejadas, nos paralisa ativando o nosso lado eremita. O silêncio e a tranquilidade se fazem necessárias, afinal, como calar as vozes de dentro com tanto barulho do lado de fora? É preciso um mínimo de aconchego em nossas almas para que possamos enfrentar o nosso desconforto. No meio do meu sonho eu enfrentava o meu pior pesadelo, multifacetado na figura de uma única pessoa. Uma horda muito bem-organizada, como aqueles chefões de final de fase de jogo, os quais possuem um pouco das características e poderes aos das fases anteriores.

Depois de tanto me questionar o porquê de tantas perseguições e de ter me colocado naquela situação, sempre me vinha a mente uma cena do filme chamado: A Cabana. O filme conta a história de um homem que não consegue superar o assassinato de sua filha ainda criança e que estava sob os seus cuidados durante um passeio. Ele vive a se torturar, se culpando e não perdoando o assassino da sua filha. Até que um dia de forma lúdica, ele é levado à um lugar onde tem acesso a vários acontecimentos que de maneira metafórica explica a sua condição e vida.

O que mais me chamou a atenção entre tantos quadros interessantes do filme, é a parte de um diálogo que ele tem com uma mulher que estaria representado o papel de Deus na história. Então, ele pergunta o porquê de tudo aquilo que aconteceu com sua filha e ainda passar pelo processo da dor de ser confrontado com sua própria dor. Perguntou Deus representado na figura da mulher, porque ela o havia levado até ali. Ela simplesmente respondeu que foi porque ali que ele havia ficado parado. Novamente ele a questionou então se ele era livre para não ter ido até aquele lugar, onde ela prontamente respondeu que não estava interessado em prisioneiros.

No fundo e na superfície eu sabia que havia algo de errado com Rafael, que seria tóxico, que eu teria dores de cabeça, mas pensava que conseguiria sair com menos dificuldade, caso as coisas começassem a tomar um rumo mais obscuro. Não foi fácil, porque hoje eu entendo que até poderia ser o sonho da minha casinha branca nesta terra, mas era também a minha cabana de outras vidas. Eu tinha que conviver com tudo e com todos que me mataram um pouco, lidar com as minhas piores dores causadas por pessoas que eu desejava manter distância e com fatos que eu só queria esquecer para sempre.

Rafael continha um pouco das características de todos que fizeram parte do meu passado, que ativavam uma série de gatilhos na minha mente, e despertavam os piores sentimentos, desencadeando uma série de reações nada boas. Era eu e meus demônios. Eu e minhas sombras. O pior de mim era despertado pelo o pior que fizeram a mim e a meu filho. Se eu tinha que passar por aquilo tudo? Sinceramente, não sei. Se eu mereci? Não sob uma lógica humana. Se foi justo? Talvez o futuro tenha esta reposta.

Rafael tinha o lado controlador de Cláudio e seu vitimismo quando era confrontado. Tinha a aparência do pai do meu filho quando este era mais jovem. Tinha o lado obsessivo, manipulador e mentiroso de Atan e uma língua ferina e ácida, marca da minha madrinha que muitas vezes me jogava pra baixo. Suas próprias características era ter ciúmes de tudo o que me rodeava, inclusive do meu filho. Não podia me ver sorrindo e feliz se ele não fosse o motivo. Como algumas outras pessoas, falsos amigos, sentia que ele queria ser eu, ter o que eu tinha, a minha liberdade de ir e vir. A parte de pegar no pé do meu filho, me lembrava um pouco de Júnior.

Confiei minha história de vida para Atan que no nosso término me chamou de bastarda, dizendo que nem minha própria mãe me quis. À Claudio que tentei ajudar dando conselhos para se livrasse do pensamento de vingança contra sua ex-mulher, fui chamada de igual à todas. Dizia que mulheres defendem mulheres e são todas iguais. À Júnior, que mostrei meu lado mais feliz, romântico e pleno fui chamada de barraqueira, cachaceira, deformada certa vez que engordei um pouco o quadril e não romântica.

Tirando o fato de que não quis pegar sal para a minha pipoca, certa vez no cinema. Disse que achava que eu estava brincando, depois de vários pedidos meus. Minha madrinha simplesmente cortava todos os meus planos e projetos de vida e me colocava em depressão segundo meu neurologista. O pai do meu filho dava tudo o que tinha para os outros, inclusive, para a sua irmã mais nova que só ferrou com a vida dele. E que acabou por nos deixar naquela situação difícil com sua família após seu falecimento.

Rafael a quem comia ovo cozido e bolinho de água e sal, eu era vagabunda, alcóolatra e uma péssima mãe que não sabia criar e nem cuidar do meu filho. É impressionante como fui taxada dos piores adjetivos no que eu mais era forte e por pessoas em que ajudei nas suas maiores fraquezas e fracassos. A última chaga vem falar sobre tudo isso. Toda vez que eu dizia que não ia mais me envolver em um relacionamento tóxico, o seguinte conseguia ser pior. Eu definitivamente não quero mais isso para minha vida. É o fim desse ciclo maldito, dessas chagas causadas por pessoas que eu só quis e tentei ajudar.

Cansei dos julgamentos alheios, de histórias mal resolvidas, mal contadas, de meias verdades, de gente dissimulada. Cansei de ajudar que não me ajuda, de não ser prioridade, de não ser respeitada como mereço e correspondida como devo. Cansei de mim, do meu apego, das minhas carências, de idealizar pessoas, achando que farão por mim o que eu faria por elas. Cansei de romantizar a dor alheia, quando a minha própria não é cuidada. Cansei de me envolver com esses tipos de energias. A minha energia é a minha energia e a minha vida tem a ver comigo e não com os outros. A história é sobre mim, sempre foi sobre mim e quando eu morrer continuará sendo sobre mim.

Ainda morando com Rafael, Claudio me procurou. Via minhas fotos no facebook e a minha “felicidade”. Meu intuito não era levar uma vida de aparência como tantos fazem, mas pelo menos os passeios e os bons momentos eu fazia questão de postar sim. Sempre detestei chorar minhas dores pessoas ou postar indiretas em redes sociais. Tive sete orkuts para fazer isso, e quando entrei para o facebook, prometi para mim mesma que nunca o deletaria passasse o que fosse eu teria equilíbrio necessário para isso.

Consegui superar e cumprir a promessa feita a mim mesma, onde nunca se quer desativei o meu facebook em dez anos. Voltando ao Claudio, dizia estar doente e me pediu desculpas por ter sido um idiota e um babaca em não ter me assumido como mulher dele na época em que eu mais precisei. Posteriormente, deletou o facebook e nunca mais nem vi e nem falei mais. As pessoas sempre esperam perder para dar e reconhecer o valor de quem um dia tentou mostrar que queria ficar e que era importante.

Ao analisar tantos fatores tomei a decisão de sair sozinha e ir a uma imobiliária para alugar uma casa. A casa era bem bacana, barata naquela região, ficava mais próximo do centro da cidade e de frente para o mercado, onde eu não dependeria de carro para essas ocasiões. Estavam fazendo alguns pequenos reparos e eu entraria em outubro e estava extremamente decidida e aliviada por estar no que seria meu ainda que alugado e doida para ver Rafael voltar a conviver com mãe dele, coisa que ele não tinha muita paciência.

Depois de ter comunicado que eu sairia em outubro, Rafael fez a mãe dele vir até mim para pedir para que eu ficasse na casa e com ele, porque quando ela morresse não levaria nada mesmo. Lembro de eu estar sentada e exausta no chão da cozinha e ela sentada em uma cadeira bem na minha frente. Fiquei olhando para a cara dela e só conseguia pensar que ela daria uma ótima atriz por estar dizendo tantas coisas que não emanavam do coração dela. Eu mantive minha palavra e confirmei minha saída.

Chegando próximo o dia da mudança comecei a sentir que aumentavam umas dores que eu já vinha sentindo há algum tempo na região da barriga. Também me sentia muito esgotada, cansada e dormia muito. Fiz um exame de sangue que constou uma leve anemia, e uma ultra que constou uma pedra no rim esquerdo. Mas sentia que a dor era além da dor do rim.

Conforme meu cansaço e sono ia só aumentando fiquei confusa em me mudar, adoecer e deixar meu filho desprotegido, visto que só seria eu e ele a partir daquela mudança. Fui protelando com a imobiliária até onde pude. Com a insistência constante de Rafael dizendo para eu não me mudar, e visando o meu forte cansaço para mudar tudo novamente, com o coração frustrado tive que desistir da casa. Paguei um valor de 130 reais referentes aos contratos feitos em cartório, mas que não havia chegado assinar.

Uma noite anterior ao dia da minha viagem, lembro de estar ajeitando os cabelos no banheiro do quarto e bebendo uma taça de vinho. Quando de repente Rafael entrou e me deu a notícia de que havia entrado com o Júnior através do facebook e enviado fotos nossas juntos, alegando que ainda eram do tempo em que eu estava com Júnior. Na época nós já tínhamos separado, mas eu não tinha mencionado para Júnior o real motivo da separação.

Lembro de largar a taça e começamos a discutir muito feio porque eu dizia que não voltaria para lá. Chamei a polícia porque ele me fazia algumas ameaças caso eu não retornasse. Rafael realmente, depois de todo o dinheiro que gastei para enfeitar a casa e deixá-la decorada, conseguiu estragar a data do ano que mais gostava. Não sei se hoje ainda é a minha preferida e tão pouco se tenho alguma.

Uma viatura chegou com dois policiais, cada um conversou separadamente conosco. Rafael afirmou que o motivo da briga era por ciúme e o policial sugeriu que eu não discutisse com ele. Que falasse que retornaria para casa depois das férias, e quando estivesse já no Rio, eu enviasse alguém para pegar as minhas coisas. Fiz o que ele pediu, entramos e dormi no sofá da sala naquele dia, como já era de costume meu quando ele deixava. Júnior me enviou umas mensagens perguntando o que significava aquilo tudo e quem era o cara que se dizia meu marido. Eu pedi um tempo e disse que explicaria tudo com calma posteriormente.

Permaneci até o dia 22 de dezembro de 2019 e fui deixando para trás e olhando tudo, as flores, o meu jardim, o beija flor vir beber água, a minha rede de balanço na varanda, a casa que decorei para o natal, o cachorrinho... Olhava para tudo como se fosse a última vez. Chegamos na rodoviária e por conta das multas do carro já vencidas, fomos de carona com um amigo de Rafael. Ele não pode nos esperar embarcar e sem nem um abraço, ambos muito machucados e magoados nos despedimos. No meu íntimo eu pressentia que seria a última vez que estaria vendo Rafael pessoalmente. E parti novamente rumo ao Rio de Janeiro, o pior lugar para se estar com a imunidade baixa, quando um potente e inesperado inimigo estava se aproximando, a covid-19.

(Continua...)