A menina ao meu lado não pode ler meus pensamentos.
Mas bem que eu queria que pudesse.
A quantidade de microfones e câmeras à nossa volta não permite que eu me comunique com ela em voz alta. Não de verdade.
Ela sorriu cordialmente pra mim quando me sentei ao seu lado, mas isso é o esperado de todos. Todos são educados hoje em dia. Ninguém quer parecer suspeito. Temos câmeras que vigiam cada centímetro ocupado pelo ser humano para garantir que nenhum crime ficará impune. O planeta Terra nunca antes foi um lugar tão seguro.
Mas também nunca foi tão robótico.
Se eu disser algo muito diferente da cordialidade, corro o risco de ser mal interpretada. As câmeras e microfones registrarão isso. A informação entrará no meu histórico e deporá contra mim. Alguns anos atrás houve na minha turma da escola um rapaz que apareceu morto. Não encontraram o assassino porque o crime tinha acontecido em sua própria casa, e na época ainda não havia câmeras dentro das residências. Mesmo assim, encontraram filmagens de seu irmão mais velho sendo grosseiro com ele; o homem foi preso por atitude suspeita. O caso ficou famoso. Chamou a atenção do povo e pôs fim à discussão que pipocava toda hora nos jornais da época: sem câmeras dentro de casa, ainda não estávamos totalmente seguros. Era necessário sacrificar a privacidade de cada um por um bem maior.
Não posso correr o risco de errar. Estou sendo observada.
Se ao menos soubéssemos falar por pensamento… Não grito com alguém desde que era uma criança. Era bom brigar de vez em quando.
A menina desvia os olhos da apresentação de slides que o professor explica com tanta paixão. Vira a cabeça e olhou direto pra mim. Olho de volta.
Por um segundo, não fazemos nada. Ela ensaia um sorriso cordial que no meio do caminho vira um sorriso amarelo. Um sorriso que quer dizer desculpe, não podemos correr esse risco. Devolvo o mesmo sorriso e olho para cima. A câmera da sala se move para a esquerda e para a direita, que nem um ventilador. Olho de volta para ela, indicando com os olhos a câmera. Temos três segundos de anonimato a cada vez. A sala está escura por causa do projetor, há uma boa chance de passarmos despercebidas.
A garota pega a caneta e começa a escrever no caderno. Desanimo logo. Ela não está interessada em transgredir regra nenhuma, aparentemente. De repente ela rasga um pedaço da folha, aproveitando a janela de três segundos, e o enfia dobrado na minha mão.
Sem olhar pra ela, levanto e peço pra ir ao banheiro.
O único lugar sem câmeras é a segunda cabine do banheiro feminino do terceiro andar; alguém a quebrou alguns anos atrás e a faculdade nunca teve verbas para o conserto. Exatamente por isso, é o único lugar da universidade inteira com as paredes pichadas. Vários desabafos, ofensas e informações estão escritas em cada centímetro das paredes, porta e até chão.
Entro logo e abro o papel esmigalhado.
“No bosque só há microfones. Os micos e gambás quebram as câmeras. Leva o seu caderno. Me encontra lá.”
Poucos minutos depois, eu estava matando aula pela primeira vez na vida e conversando de verdade pela primeira vez em muito tempo - ainda que por escrito.
Os beijos tiveram que esperar até a semana seguinte. Havia muito o que dizer.