Em tempos de Pandemia

Carta

Pessoa querida, como está a vida? Como andam suas criações culinárias? Como tem passado esse último ano? Como seus familiares estão? Faz tempo que não nos falamos e sua reclusão na casa de praia interfere no seu trabalho. E como você enfrenta isso? A vida aqui segue tranquila, cuido do jardim, na varanda, da horta, na varanda e aproveito pra bater um papinho com os vizinhos, na varanda... rsrsr ...a varanda é meu lugar favorito. As plantas são muito generosas e agradecem diariamente com hortaliças e flores. No mais estudo, faço pães,que distribuo com os amigos e vizinhos, cuido da limpeza da casa e converso muito com minha hóspede Alice e com meu filho Mateus e minha nora Mariana. Atualmente tenho buscado construir uma rotina mais organizada pra evoluir nos estudos do CNV e produzir alguns textos. Percebo que estou distante de encontrar um lugar onde me sinta confortável no mundo. As questões sócio políticas me afetam e as relações estão se tornando bastante ríspidas por conta das divisões políticas. Ainda tenho um joelho chorando e outro com ciúme... rsrsr...enfim, não pretendo fazer cirurgia e estou indo ao fisioterapeuta com frequência. Isso me agrada porque alivia minhas dores e dou muita risada das piadas contadas pelo profissional que me atende. Pequenas alegrias em tempos difíceis são verdadeiros presentes. Sei que preciso estar atenta a esses sinais e deixar-me ser feliz nesse instante.

Perdi pessoas próximas pro Covid. E não foi fácil. A morte já está no nosso imaginário com um peso acima do que deveria ser. No caso de uma pandemia ficamos sem viver o luto, sem nos despedir, sem abraçar, sem consolar e ser consolado. O momento de dor congela como num filme onde a imagem para e ficamos sem ver o final. Faltou luz? Caiu a internet? Não pagamos a Netflix, a Globoplay, a Lumine? Ou mamãe desligou a chave geral? Será que precisamos pensar? Culpa? Castigo? Lição? Criação do homem? Reação da natureza? São tantas questões. Prefiro acreditar que são eventos que precisamos viver, individualmente e em grupo, para que possamos evoluir enquanto humanidade. E preciso cuidar da minha parte aqui com muita responsabilidade e amor pela vida.

E por falar em amor sinto falta de sonhar com um companheiro amigo e parceiro, mas isso eu já entreguei a Deus e ao meu anjo da guarda, Não dá para fazer tudo sozinha e como esse mundo tá muito doido eu tenho paciência pra deixá-Los cuidarem das urgências pois meu caso não requer internação e sim atendimento ambulatorial.

Tenho percebido sua angústia quanto ao meu silêncio. Realmente estou mais “na concha” como diz meu amigo Feu. Você tem demonstrado muito essa necessidade de falar e de ouvir o que tenho vivido. E tem repetido isso várias vezes.

Eu não te julgo por isso, de forma nenhuma. Acho até que repete porque não percebe que eu te compreenda. Mas fique em paz, eu entendo e sinto não poder estar presente da forma que você precisa. Estava pensando sobre isso ontem: ninguém vive uma pandemia de uma forma igual a outro. Cada pessoa mergulha em seus "porões" nesse momento e ressuscita aqueles monstros que te assustou um dia e, afugenta-os ou alimenta-os. Entre o alimentar e o afugentar tem todo um tempo a ser experimentado. Nem mesmo a própria pessoa imagina que monstros vai acordar quando desce ao porão. E eles acordam! Com força e com coragem pra devastar nossa serenidade. Outro dia assisti ao filme Parque dos Dinossauros e fico aqui me perguntando se não carregamos dinossauros dormindo nas nossas almas, todos possíveis de acordar, todos desconhecidos, cuja força nem imaginamos que possuam. E nessa Pandemia eles, os monstros, se renovam e crescem alimentados por nossa própria capacidade de criar e também de se deixar levar pelos redemoinhos.

Tenho pensado nos livros que li que tratavam de guerras, do holocausto e das grandes questões de sofrimento humano. Pensei em Victor Frankl e como ele conseguiu sobreviver tanto tempo a três campos de concentração. Ele tinha um propósito. Ele tinha um sentido pra viver. Estamos no mundo por uma razão. Precisamos descobrir o que nos move. Os monstros? Os dinossauros? Vou aqui domando os meus, quando posso, adormecendo outros, curando alguns e transformando em pássaros dóceis. As vezes até pego uma carona em suas asas e contemplo o mar. Continuo em busca do que pra mim faz sentido. Cest la vie!

Salvador, 12.03.21