A ÚLTIMA CHAGA - A promessa 72

Promessas, alianças, pactos, acordos, juramentos, palavras... Nem todos os contratos possuem uma natureza física, mas como o dito: a palavra proferida é tal como flecha lançada. Uma vez disparada, não volta atrás, pelo menos não após o seu lançamento. Podendo assim ser lançada na direção oposta à anterior. Eis o lançamento de uma mudança de rota, da quebra de um contrato, da mudança de uma atitude, da quebra de uma aliança, de errar o alvo...

Lembro-me das noites, aliás, sempre as noites... Acredito que por ser um lugar muito pacato e Rafael na flor de sua idade, necessitando preencher o seu vazio, como muitos jovens, buscava na adrenalina uma forma de se sentir vivo. Autoestima muito baixa, ex-viciado em drogas, e pessimamente educado com a falta de limites. Boa parte de toda a verdade é que eu sentia pena de sua mãe. Em certas noites, a luz faltava na sua casa e ele saía para beber, sua mãe ficava sozinha e eu pedia para que fosse para a mesma para ficar com ela.

Tal como uma alma penada vagando em busca de uma faísca de luz, ele me enviava fotos dele chorando, com os olhos avermelhados, segurando uma garrafa de vodkca. Também enviava fotos de crianças conhecidas, dizendo que seriam os futuros amiguinhos do meu filho. Chegava em casa bêbado pela a madrugada e me ligava fazendo chamada de vídeo. Acordava sua mãe, acendendo a luz em seu rosto, a abordando sobre o isqueiro que ele dizia que ela escondia dele, para que ele não fumasse dentro de casa, visto que fazia mal à saúde dela.

Lembro-me de uma noite de inverno, em que ele acendeu o cigarro na cozinha e ficava falando coisas de bêbado. Chato, tagarela e na maioria do tempo falando coisa com coisa, mas que no fundo faziam algum sentido dentro dele. Deitada, debaixo das cobertas e já de banho tomado, vi que naquele dia ele não "tombaria" como o de costume, iria ficar até de manhã. E se não me perturbasse, perturbaria a sua mãe. Pedi que ele tomasse um banho quente, pois sabia que seu corpo iria relaxar e adormeceria. Manipulador como era, aceitou com condições, que seria eu também ir tomar banho. Saí do meu conforto, tomei um outro banho, ele deixou o celular cair novamente e danificou outro telefone. Por fim dormiu, eu dormi, mas considerava que aquilo era pesado demais para mim.

Certo dia discutimos e como os motivos eram tantos e variados, hoje eu não consigo precisar certo o motivo, e sempre que essas coisas aconteciam eu precisava bloqueá-lo. Mas ele sempre comprava outros chips e me ligava. Mesmo eu bloqueando, ele comprava e comprava sem parar. Não duvido que ao longo de toda a nossa história conturbada, ele tenha comprado uns trinta chips ou até mais. Quando podia enviava mensagens dos celulares de seus parentes, se passando por eles. Em alguns casos me dando uma bronca por bloqueá-lo, em outros, me intimando a acreditar que ele realmente me amava, pedia as famosas desculpas e as inúmeras promessas de mudança. Alegava a insegurança por conta da distância, mas no fundo eu sabia que os problemas eram outros.

Eram seus distúrbios psicológicos, sua espiritualidade enfraquecida, sua vida decadente, sua carência e até mesmo o seu mau caratismo. Até que fortemente decidida e vendo que eu iria novamente de contra à tudo o que havia prometido para mim mesma, que não cometeria os mesmos erros, eu resolvi dar um basta definitivo em Rafael e naquela situação totalmente caótica e de extremo abusos e apelos emocionais. Sua irmã Vera me fez chamada de vídeo de seu celular, intercedeu por ele e eu estava irredutível.

Chorando muito igual a uma criança como era por hábito, insistiu para que eu deixasse que a sua mãe falar comigo. Eu deixei e ela me chamando pelo o meu nome, pediu que por ela, eu desse uma nova chance para o seu filho. Eu lembro de chorar na ocasião e dizer que sentia muito, que já havia passado por muitas coisas na vida, que já tinha tido depressão, que por ter um filho para cuidar e que dependia única e exclusivamente de mim, eu não poderia ter de forma alguma, uma recaída.

Desabafei que seu filho meu proporcionava o cenário perfeito para que aquilo pudesse vir a acontecer, que seria um passo muito importante e que naquela altura da minha vida eu não poderia de forma alguma dar um passo em falso, tanto pelas questões emocionais, como financeiras e pela minha idade. Ela também começou a chorar, disse entender a minha situação e prometeu que se eu desse mais uma chance para o seu filho à pedido dela, que ele ia me tratar muito bem e jamais faria mal a mim e nem a meu filho. Ora, era uma senhorinha de idade avançada, com 72 anos, sempre gentil e simpática, chorando na minha frente e pedindo ajuda para o seu filho e oferecendo garantias da sua cooperação para o bom andamento do nosso relacionamento. Com o coração ainda aflito e muito conflitante eu aceitei, mas disse que seria a última vez que ele me destrataria.

A partir daquela noite, eu via ele tentando mudar, tentando ser menos possessivo, tentando me dar mais espaço, mais privacidade, mais do que era meu por legitimidade, ou seja, minha própria liberdade. Mas, seu vazio era tão imenso que ele se autossabotava como alguém que jamais conheci na minha vida. E então em uma outra noite Rafael fez uma chamada de vídeo juntamente com a sua mãe, para garantir que eu não brigasse com ele. Estava com o rosto todo ralado, o olho inchado e de cara me veio à mente que ele havia bebido e brigado com alguém no bar.

A história por ele narrada era que havia caído da moto, à princípio porque atropelou um cachorro, em outra versão porque o pneu havia estourado. Confesso que até hoje desconheço o verdadeiro motivo. Eu sentia pena e pensava como uma pessoa tão bonita e com tantas pessoas tentando ajuda-lo, tentava tanto se destruir. Pensei muito que eu não tinha nada a ver com aquilo tudo, mas que talvez o universo não teria cruzado nossos caminhos para eu ajudar ele a se aprumar em sua vida e depois seguir o meu com ele ou sem. O meu lado fraco era pensar mais nos outros do que em mim mesma e quando pensava em mim mesma, era julgada de ser egoísta. Essa era a minha vida, esses eram os tipos de pessoas, das quais minha vida estava rodeada.

Por muitas noites Rafael ainda tinha recaídas com seu ciúme e possessividade e nas manhãs dos dias seguintes parecia ser outra pessoa, pelo menos até certa hora do dia... Para compensar ou acho mais que para não me afastar, ia fazendo certos mimos. Imprimia fotos minhas e colocava em porta retratos que ficavam no rack da sala. Fez um balanço para o meu filho brincar quando fôssemos para lá. O balanço confesso que me fez lembrar da minha infância, quando brincava em um quintal grande em que tinha muitas árvores, e eu me balançava em um balanço que meu pai fez para mim.

Não me lembro bem ao certo o mês, mas creio que tenha sido por volta de setembro ou outubro que enviei a metade da minha mudança. Como o irmão dele tinha uma empresa que entregava peças para floriculturas em todo o Brasil. Aproveitamos uma entrega que ele fez para o Rio de Janeiro e assim as despesas seriam menores. A outra metade iria comigo em dezembro.

Sua irmã Vera iria passar o ano seguinte na Itália e viajando em outubro não iria precisar do seu carro. Fizemos um acordo, no qual passaria para o meu nome e então eu dei um valor de entrada no seu carro, seguida de cinco parcelas. O carro ficaria aos cuidados de Rafael até que eu finalmente viajasse em definitivo. Também enviei uma certa quantia de dinheiro para que fosse feita uma varanda, pois quando chovia, a água da chuva entrava na sala e cozinha. Era o sonho da minha casinha branca de varanda, um quintal e uma janela só pra ver o sol nascer.

Chegando ao final do ano eu fiz o restante da mudança que faltava e também viajei rumo à minha casinha branca que não fazia a mínima ideia de que se tornaria em um grande pesadelo digno de quarto de pânico...

(Continua...)