Brasilópolis, 28 de novembro de 2020
 
 
Prezado, João
 
Aproveito o expediente e o saúdo com sincera estima e a saudade costumeira por longa data. O motivo do contato, além do afeto genuíno peculiar de uma amizade verdadeira, deve-se a obrigação de inteirá-lo sobre os últimos acontecimentos por aqui transcorridos e também da minha constante inquietação acerca da situação desse velho País. Como bem sabes, afinal foram inúmeras as nossas resenhas a esse respeito, jaz em mim um pessimismo sem fim.
 
Explico-me, pois bem. Ontem a tarde tombou uma carreta no trevo da entrada da cidade. Beirando a encosta, a jamanta só parou quando colidiu com os postes entranhados na guia. A carga, por volta de 37 toneladas de milho, em minutos foi saqueada pela população. Como já me conheces, andei rápido e cheguei a tempo de coletar trinta sacos; devidamente vendidos na feira local, agraciando-me com quase três mil reais. O dinheiro veio na hora certa para financiar o automóvel da patroa e quiçá acalmá-la. Ela anda desconfiada de mim, depois que veio à tona meu envolvimento com loira dona do hotel. Sim, aquela mesma de anos atrás cobiçada por você. Por fim cedeu às minhas investidas e estamos enrolado.
 
Juntarei a essa verba o milhar ganhado na venda do meu voto. Aliás, deixa eu ser justo, devo dar a metade para Rose, pois ela concordou em vender o dela também. Contudo, o carro será para ela mesmo, então que me ajude a pagar, oras! Falando em política, aqui deu Epaminondas de novo. O esquema conhecido funcionou outra vez. Participei de algumas reuniões, mas achei muito arriscado. Você sabe, não quero encrenca com a Lei. Preferi só vender o voto mesmo e baixei a ordem lá em casa para se votar no coronel.
 
Penso, meu amigo, quando será a vez do Brasil? Nosso povo tão sofrido, a mercê desses políticos corruptos, sugadores de dinheiro público. Estou perdendo a fé. Na lojinha, até dispensei o Túlio. Muitos impostos! Estava difícil pagar o salário dele, mesmo sendo só a metade. Consegui com o contador uma manobra de registrar o rendimento na carteira superior ao recebido. Isso foi minha salvação. Ah, e minha restituição do imposto de renda saiu. Por favor, agradeça a seu tio por ter me fornecido aquelas notas frias; se não fosse por isso, iria pagar para o Governo.
 
Hoje é necessário ter um pé de dinheiro; muitas despesas e poucos recursos. Agora a Rose inventou em tirar a carteira de habilitação. Vê se pode? Mas o culpado fui eu, com essa história de carro. Já estou vendo com o César se ele me entrega tudo pronto. É um pouco mais caro, mas evita dor de cabeça. Vi na tevê, ou melhor, via, pois meu gato está há três dias sem sinal, que a justiça descobriu um esquema de propina no Detran. Que pouca vergonha! Todo dia é um escândalo diferente. Tem jeito não meu amigo, esse Brasil nosso é isso aí.

Peço, quando for possível, ligue para sua afilhada e lhe dê bons conselhos. A menina está me matando de desgosto. Ousou me enfrentar, só porque tinha proibido-a de namorar com aquele pé-rapado do Bruno. Onde já se viu, amigo? A gente cria os filhos com tantos sacrifícios para eles nos desapontarem assim. Jamais permitirei minha filha namorar com um sujeito daqueles! Além de pobretão, o rapaz é de cor, morador daquele bairro de bandido. Ah, e Ritinha ainda teve a pachorra de me chamar de preconceituoso! Logo eu, que tenho um monte de amigos negros. É muito desgosto meu amigo!
 
Confesso a você minha preocupação com minha irmã Lisa. Ela depende daquele serviço de professora, e o coronel até prometeu que ela ficaria, mas, você sabe, conversa de político a gente desconfia. A coitada fez uma campanha implacável para o homem, até foto colocou na porta de casa. Já a prima Clotilde terá má sorte. Preferiu apostar na oposição e perdeu. O amigo acredita que ela recusou votar no coronel mesmo ele prometendo aumentar o salário dela por fora? É burra mesmo! Falei para ela aceitar, mas ela veio com uma conversa estranha de ética. O povo não aprende mesmo.

 
Eu entendo! Nem todos têm a visão ampla de seu Aimar. Ele sim sabe viver. Há anos vende para a prefeitura e sabe mexer os pauzinhos para ganhar o dele e deixar os outros ganharem. Hoje está bem, com uma bela casa e carro zero na garagem; sem contar os terrenos espalhados pela cidade. O mundo é dos espertos, e a gente não deve demorar para descobrir isso. Enquanto nós, cidadãos de bens, estivermos sustentando esses ladrões lá Brasília, a coisa permanecerá nessa esculhambação e tentaremos sobreviver a qualquer custo.
 
Bem, meu amigo João, me despeço por aqui. Já há muito me alonguei, embora me fez bem desabafar meus dissabores nessas linhas. Prometo tentar a voltar a crer em nosso País, e continuar lutando para tirar esses corruptos do poder. O povo precisa acordar! Afinal, se os bons não se mexerem, o mundo será governado pelos sujos. Um grande abraço, meu amigo. Dê recomendações às crianças. Rose te manda saudações. Até a vista! Ah, e dê notícias.
 

Pacheco da Silva