Ecos da Pandemia – Reaprendizados e Reflexões – Parte 03
Ontem, após quase 6 meses, voltei a dar uma caminhada. Antes, nesses tempos pandêmicos, só houvera saído, basicamente, para ir ao mercado ou farmácia. Tudo com muito cuidado. Rotina energúmena essa, mas, infelizmente, necessária.
Somente quem cultivou a vida inteira tal atividade sabe a falta que faz, para o corpo, a mente e o espírito, a ausência dela. Durante muito tempo, mantive uma rotina de corredor de rua, mas, com o transcorrer do mesmo, passei a caminhar. O tempo, esse mestre, foi mostrando, pouco a pouco, quem mandava. É preciso notar e entender os sinais da passagem do tempo e entrar em harmonia com ele. Como no mar, um dos grandes representantes da natureza pujante, o bom marinheiro sabe lidar entrando em harmonia. Quando ele (o mar) quiser, podemos querer. Quando ele (o mar) não quiser, o melhor a fazer é não querer também.
Quão benfazeja é essa simples atividade física, a caminhada, que, a priori, só serve para mexer com os músculos do corpo e oxigenar melhor o cérebro, mas tem uma conotação toda especial para mim. Ela me conecta com os meus botões e com o etéreo. É durante a mesma que travo meus diálogos existenciais ou declaro minha mea-culpa à natureza em derredor.
Às vezes aproveito para exercitar a memória, tentando declamar certos poemas, como, por exemplo, “Poema em Linha Reta”, de Álvaro de Campos, que diz:
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza”
Outra coisa importante que, também, aproveito para fazer, em tom baixinho, é declarar o meu agradecimento à vida pela existência dos meus amores, dizendo: “Obrigado”.
Ah, a caminhada, que ótima sala de aula!