CARTA A MINHA SAUDOSA MÃE ASSUNTA CASTANHAL – ANO 2020

Mãe mais uma vez te escrevo aqui de Castanhal no PA onde moro para lhe falar de como estou, da minha saudade e para dizer que tenho pedido as espiritualidades que cuidem bem da senhora nesse novo plano ou novo mundo.

Hoje acordei cedo, bem cedo. Abri a janela, olhei as plantas na varanda, pela grade vi o dia despontando bonito. O sol já estava de pé todo radiante. Nessa hora eu pensei: onde ela está? E se ela estivesse aqui estaria molhando as plantas do jardim. É que no meio das flores ela conseguia ficar bem escondida, disfarçada de rosa menina.

Fui até a cozinha peguei água e comecei a molhar as plantas conversando com elas como minha avó/mãe fazia. E quando eu perguntava porque ela falava sozinha me dizia: não falo só elas me escutam e conversam comigo. Ali eu entendi o que é o território do afeto e como ele se constrói.

Então já era quase seis e meia da manhã quando fui até a porta da cozinha e olhei as árvores no quintal. Elas se balançavam com o vento, estavam agitadas e os passarinhos cantavam animados. Lembrei que minha velha mãe acordava a gente dizendo: levanta menina que os passarinhos que não devem nada a ninguém já estão cantando e você ainda está dormindo?

Nessa hora em que eu rememorava minha infância me veio um cheiro de café, claro que era da vizinha ao lado. O cheiro do café me trouxe o cheiro da fumaça, a vontade de ver a lenha queimando no fogão e a gente ao lado para espantar o frio da manhã no calor do fogo. Não era da casa da vizinha o cheiro da fumaça, era da minha infância de aldeia. É que lá as cinco da manhã já se começa a sentir o cheiro da lenha no fogão e da banana assada, do peixe moqueado.

Eu estou por aqui mãe sentindo saudades, uma saudade eterna e que hoje não me machuca como antes porque entendo que sua missão nesse plano foi de muito ensinamento e aprendizado. Deixou sementes plantadas em mim que rego todo dia com a água da generosidade, do afeto, do carinho, do amor e da ternura. Me deste a possibilidade de entender o bem viver na prática pela pedagogia simples do povo Tikuna que não precisa de muita estrutura didática apenas da paciência, escuta e da prática. Me proporcionaste uma infância de aprendizados profundos que hoje me servem como forma de buscar um mundo melhor para tantas outras crianças que vivem na aldeia e na cidade.

Sinto sua falta como toda filha sente falta da mãe, quando quero tomar decisões sérias fecho os olhos e lhe vejo com uma vassoura na mão, ou deitada na maqueira de tucum cachimbando a sabedoria de um conselho que vinha sempre seguido de uma narrativa. Lembro da sua espiritualidade forte que aplicava na cura dos parentes na aldeia através de remédios extraídos da mata e dizia que se vinha de graça era para ser de graça apresentado.

Cresci vendo uma guerreira em ação, uma mulher de força na voz, um rosto sério, mas um coração generoso, alegre, capaz de distribuir bondade, caridade e amor. Convivi com uma poeta de natureza, de uma escrita caprichada, uma compositora e cantora que falava das musicas de época de juventude na cidade de Manaus. Sei de seu amor e carinho pelos Tikuna, a dedicação que teve no ensino na aldeia. É difícil chegar na aldeia Belém do Solimões e não encontrar quem diga: estudei com a professora Assunta.

Foste de uma garra e coragem num tempo em que a mulher não tinha muito direito de fala nas decisões na aldeia. Mas mesmo assim enfrentou o modo patriarcal de ser do povo e se fez ouvir. Buscou seu lugar na sociedade Tikuna e era ouvida como liderança. Hoje a ocupação da mulher nos espaços de luta é bem maior e se expande a cada dia na aldeia e na cidade.

Abre-se um novo tempo onde a voz feminina tem poder de decisão, a verdade é que sempre mas hoje percebo uma luta mais igualitária, ocupamos o cargo de cacica, de pajé sem deixar de ser mãe, sem deixar de cultivar a roça que é feminina na sua essência de ser terra, de gestar a vida de plantas, de ser morada de animais e microrganismos, de ser nossa casa comum, nossa uka maior.

Eu estudei como lhe prometi, me pediu para ser doutora, não sei a que doutorado se referia mãe, mas estou buscando alcançar esse objetivo na Universidade. Seu pedido foi que quando eu fosse doutora não esquecesse do lugar que nasci e nem do povo que me acolheu. Todo dia lembro de seu pedido feito antes de sua partida.

Tenho saudades mãe de seu cheiro de tabaco, de folha queimada, de terra molhada, de água e de sol. Como não lhe chamar poesia se o que de ti ouvi era uma poética retratada no dia a dia, na sabedoria de tua velhice, em cada fio branco que o tempo pintou. Quando penso em ti a poesia nasce em mim pura, simples e serena como sereno era seu rosto.

Quero pensar que a senhora não partiu, mas que virou Matinta e que em algum momento virá assobiar fino e forte causando em mim arrepios. Que está em algum lugar cuidando da mata, dos animais, defendendo com coragem a natureza da máquina da destruição movida pela ganância de ter de uma sociedade capitalista que busca o viver bem.

Por aqui eu sigo minha mãe em sintonia com seu espírito e o de tantos guerreiros e guerreiras que por nós passaram e deixaram sua marca registrada do ensino do bem viver em cada gesto, em cada palavra, em cada coração. Nossa comunicação continua e nesse momento lhe escrevo para dizer que permaneço firme na luta, imaginando como seria sua atuação, o que faria vendo tantas coisas ruins que vem acontecendo com os povos nas aldeias e na cidade. Com a senhora prendi a pedagogia do acolhimento, do afeto, da solidariedade, mas é difícil fazer esses saberes serem vivenciados nesse mundo em construção onde tudo é meu e nada é nosso. Do lado de lá nos mandem forças e coragem para continuar a missão, a resistência com união e dedicação. Porque na casa comum todos somos um.

Márcia Wayna Kambeba
Enviado por Márcia Wayna Kambeba em 29/08/2020
Reeditado em 29/08/2020
Código do texto: T7049054
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