Barulho. Para talvez não ouvir vocês

Existia um contexto antigamente, quando nos juntávamos para conversar e tocar nossos instrumentos naquele nosso lugar, que, quando você vive, sua alma são infinitos cacos de uma luz especial, feita a cor da sua alma, e, enquanto vive, você dá, involuntariamente, esses cacos para as pessoas que você convive, ama e adora. Eu, depois de vários anos vejo os cacos de todos eles que deixaram comigo.

Vejo nos lugares que andávamos, vejo nas ruas que podiam nos encontrar, vejo, nas conversas que foram deixados na Avenida Sanitária. Eu vejo, eu lembro, nós.

Esses cacos, na escuridão, iluminam como o céu, demonstram-se lanternas de um mundo utópico, da fragilidade daqueles que foram, mas que tem uma etapa melhor que não voltam, nem voltariam.

Se eu pudesse dar uma cor para essa situação, seria laranja, como as vezes do pôr-do-sol enquanto nos preparávamos para subir ao nosso lugar. Talvez seria a falha geológica da cidade um meio de que os ecos ensurdecedores dos injustiçados e até mesmo dos ódios serem absorvidos para o mundo, num lugar, num momento, que a própria Terra não entenderia a angústia humana, mas apenas, de certo modo, um túmulo para apaziguar as gargantas secas.

O véu dos mundos é fino, parece que se tendo vontade, poderiam tocar, poderiam falar, até mesmo, fluir um sentimento que não poderia ser humanamente possível, mas, eu os ouço, imagino se conseguem me ver escrevendo isso e o que poderiam responder, alguns estariam me batendo, outros estariam intrigados pelas linhas, os raros, amariam essas palavras, mesmo com tom fúnebre.

De expresso, digo que eu gosto do barulho, necessito da música, não somente pelo gosto, pela apreciação, mas para haver, minimamente, um pouco de silêncio as vezes, como se eu projetasse minha paz através da desordem, e digo, que esse barulho, condicionalmente é utilizado porque eu quero acreditar que todos seguiram em frente. Mas sei que não é verdade.

Certo dia, sentirei a saudade do barulho que ignoro e tenho medo sim, do silêncio ensurdecedor me tocar gelidamente, pois, por mais que eu tenha fragmentos de suas almas, vocês, mortos, levaram fragmentos da minha. Saudade, talvez angústia, medo. Sentimentos entrelaçados de modo sucinto, finamente bordados entre si, com uma linha de diamante.

Esses barulhos, do quanto sei que me amam e que amei, são sinfônicos, amáveis, calorosos, que me fazem, numa madrugada fria, ter pelo menos quentura no peito, por mais que os pés se encontram gelados, os olhos pesados e as mãos dormentes pela friagem da madrugada, sei que, por esse motivo, os ecos e as palavras sintéticas, posso bater meu peito mais um dia.

Um dia, nesse mar de confusão, nessas águas sazonais, poderei eu, poderia nós, novamente, com esses fragmentos coloridos, construir uma ponte entre nós.

E, apesar das escolhas, apesar dos pesares, das madrugadas em silêncio por não ter a voz, assim que eu estiver pronto para quebrar minha alma, receberão, de bom grado, seus pedaços como tesouros, porque morremos de corpo, mas a alma ama.

Sinceramente, sinto muita falta. De tudo.

De todos.

Corvo Cerúleo
Enviado por Corvo Cerúleo em 22/07/2020
Código do texto: T7013051
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