CARTA AOS PROFISSIONAIS INVISÍVEIS
Na mudez visceral de uma quarentena recheada de burburinhos assustadores e insensíveis, o grito de uma criança traz a mensagem indiscreta na quebra do silêncio quase mortal. “Mãe estou aqui apesar de você estar aí.”
Elenice sai de casa com todos os aparatos necessários, além de casaco e guarda-chuva.
Leva máscaras e álcool em gel, nem sempre garantido nos seus 70%. Mas ela precisa confiar que seja eficaz e não a coloque em risco.
A reza na porta de casa se tornou uma necessidade emergencial. E munida de todos estes talismãs, vai de encontro ao desconhecido do dia.
Sua rotina de limpeza e desinfecção acontece nos Hospitais de Campanha. Sua carga horária de serviço não especializado, ficou mais pesada. Apesar de não ter formação técnica e nem diploma, Elenice deveria ser considerada uma profissional componente da área da saúde. Corre os mesmos riscos que os médicos e demais técnicos. Mas não é lembrada em homenagens aos profissionais da saúde.
Durante seu trajeto no metrô lotado no ultimo sábado, Elenice se entregou aos pensamentos de medo e angústia.
Lembrou que nunca havia passado por um exame de detecção do novo coronavírus quando sentiu um cansaço fora do comum, uma dor aguda na garganta que a fazia tossir. Mas dizia a si mesma que isso se devia ao aumento das tarefas e à intensificação dos cuidados no trabalho. Nova rotina. Mais dura.
Quase não havia tempo para ficar ao lado da filha e muito menos ajudá-la nas tarefas da escola.
Com o emocional abalado, Elenice seguiu para o trabalho.
Levava consigo o estresse e o medo.
Uma colega que trabalhava na lavanderia havia faltado no dia anterior e a notícia não foi nada boa. Ela era coletora da área das roupas sujas e corria o risco de se contaminar por ter contato direto com as peças infectadas.
Elenice ficou muito aflita e a incerteza de estar ou não contaminada aumentou consideravelmente. E levar a contaminação para casa, se tornou uma ameaça à sua saúde mental.
Os pacientes em estado grave nem sempre continuavam a ocupar o quarto que limpava. Parecia rodízio de gente. Mas não era. Era o vírus acompanhado da morte que os levavam dali.
A noite não significava mais nada para ela. Não conseguia dormir. Tinha percebido que ultimamente andava mais triste e medrosa. Nestes pensamentos ela incluía sua filhinha. Deveria isolar-se para não contaminá-la? A Dra. Maria Lúcia não via seus filhos há dois meses. Mas ela era doutora e isso não se aplicava a ela, simples faxineira.
Envolvida nestas indagações e dúvidas constantes, Elenice chegou ao seu destino. Mas não chegaria a voltar para casa.
Aos 34 anos, rendeu-se ao vírus.
Sua filha continuaria a quebrar o silêncio de sua falta: “Mãe, estou aqui, apesar de você não estar aqui.”
Mírian Cerqueira Leite