Carta ao Povo Brasileiro: Precisamos da nossa liberdade I

Brasil, 21 de maio de 2020.

Caríssimos,

O mundo será o mesmo? Não temos como saber essa resposta. Mas, podemos perceber o que nos é apresentado no agora.

Parte do povo quer carnificina. Quer ver sangue. Quer corpos pelo chão. Querem ver a desgraça.

É reação. É trauma. É resposta. É humano.

Temos repertório construído para lidar com a morte de outros. As experiências nos proporcionam isso. Vivenciamos cotidianamente, sem percebê-la. Por que iriamos abrir os olhos agora?

Ver a morte do outro já não gera remorso, pouco menos trauma. Eu tenho um cartão que me permite comprar um celular, com o triplo da minha renda, pagando em parcelas mensais, num tempo suficiente para alimentar a minha preocupação, tirando o foco da morte do outro. E o outro é só o outro, oras. Com meu celular vou ter instrumentos pra matar o tempo e bloquear qualquer possibilidade de pensar sobre.

Meus pais morreram. O que fazer? Eu choro, me recolho por um dia e depois eu vou as compras, vou ver os amigos num restaurante, me afundo no trabalho e não terei tempo para pensar na dor.

Vamos abrir o comércio, seguindo os protocolos de recomendação, respeitando a liberdade individual – esse deus que é tão proclamado. As pessoas precisam decidir sobre elas mesmas e aprender também, na prática, sobre os resultados dessas decisões. Ou seja, precisamos de experiência.

Vamos abrir as escolas. Vamos enclausurar nossas crianças em salas com 30, 40, 55 alunos e alunas por turma, naqueles que os/as docentes nem tem espaço para caminhar. É só colocar as máscaras e cada uma levar seu álcool em gel. Se a dita criança não tiver em casa, o problema não é meu (adulto) – embora nós saibamos que as crianças tem uma capacidade de repartir que é admirável e carece de estudos Então, nesse caso, com certeza ela não ficaria sem, pois as crianças fariam o que os adultos seriam incapazes.

Pessoas sempre morreram de fome, em vários lugares, a todo o tempo e isso era normal, ninguém se preocupava. Mas agora, por favor. As pessoas estão morrendo de fome, porque o comercio está fechado. Não tem lugar para as pessoas que tem dinheiro comprarem seus eletros, roupas, calçados e decoração para casa, porque as lojas estão fechadas e são elas – as consumidoras – que asseguram, por meio das suas compras essenciais (para mantê-las longe da realidade) os empregos de tantos e tantas trabalhadores/as. Deixem o povo comprar! Vamos deixar a fome como estava, numa margem que nossas campanhas de final de ano para arrecadação de cestas básicas possam controlar. Sim, porque uma cesta básica para uma família no natal assegura a qualidade de vida dela durante o ano todo – ou serve ao menos para amaciar o meu ego que está em total desequilíbrio e adoecido.

Mas, por favor. Ao voltar, vamos olhar para algumas coisas que podem gerar algo melhor no futuro. As crianças ainda são a esperança. Vamos ensinar solidariedade (livre de qualquer comodismo e conformismo), acolhimento, economia doméstica, responsabilidade social, ética, humanidade, poupança, liderança. Elas ainda podem se salvar e salvar o que pode ser a nossa espécie.

Vamos armar as pessoas e deixar que elas coloquem pra fora a ira que sentem delas mesmas, por serem quem são. “Não matarás” não existe nessa terra de ninguém. Deus está morto! Ou ele será, quando apertarem o gatilho. Se apertarem, depois será dito que foi em legítima defesa, ou dirão que estava em desequilíbrio mental e pronto, tudo certo, sigamos.

Sempre ouviram o vizinho batendo na esposa. Na cabeça super evoluída – o auge da darwiniada teoria das espécies – a culpada sempre foi ela. Por que raios iriam se preocupar com isso agora? Só porque se antes ele batia uma vez na semana e agora passou a ser todo dia? Ela que fique em casa, para “eu” não ver os hematomas e sigamos. No máximo, eu aumento o volume da tv, ou coloco os fones de ouvido e viajo cultivando os valores da minha religiosidade.

Outra coisa. Preciso pontuar. Esse vírus não chegará na minha residência pois o Senhor habita nela. Por isso não preciso me preocupar. Quem precisa é o outro. Sabem quem? Os gays. Eles são a culpa disso tudo. Tinham dois se beijando fantasiados de “o filho do homem”. Uma audácia, não? Como podem? Ultrapassaram a insanidade e falta de respeito. Alimentaram a ira de deus, mesmo que ela nunca tenha sido alimentada o suficiente com a quantidade de pessoas que historicamente morrem de fome no mundo, e na minha cidade, ou com o número absurdamente elevado de crianças que são abusadas sexualmente por adultos, na sua maioria homens, no papel de pais, irmãos, tios e avôs, ou vizinhos, muitas vezes até os mesmos que descobriram que a culpa é do vírus ira de deus são os gays. Quantas pessoas desabrigadas, sem teto, sem lar e sem direitos, sem existência. Quantas desempregadas? Violentadas e vítimas da corrupção – Sim, porque ela é uma questão com consequências humanas. E as guerras? O abandono de menores? E os homens que engravidam as meninas e desaparecem, deixando-as com as crianças em desamparo? – sem falar que muitos desses casos estão inseridos como consequência dos abusos sexuais. Vocês sabem o número de crianças em pai no registro civil? Tem uma lista grande de coisas, ainda. Mas, elas eram insuficientes para elevarem o Homem ao seu nível máximo de ira. A gota foram os gays.

Por favor, salvem nossas crianças!

Abram o comércio. A fome pode chegar até nossos olhos e não podemos ver isso. Como teremos como negligenciar e dizer que ela não existe? Nos salvem dessa dor, de ver a realidade.

E, por favor, parem com essa desgraça na mídia. Coisa mais tendenciosa, ficar mostrando número de mortes. Ninguém morre de mais outra coisa não? Sempre morreram, mas eram em contextos distantes – do meu contexto – assim eu nunca via. Sim, me revoltava saber que alguém morreu vítima de assalto, ou que 100 morreram numa queda de avião, ainda tenho um pouco de humanidade. Mas por que ficar juntando esses casos e criando número que podem também fazer com que eu enxergue a realidade? Alias, que realidade? Pois os números são comprados, criados, camuflados, para gerar pânico. Quem sabe mesmo é o sábio que trabalho redigindo texto no blog da internet, ou fazendo mídia no youtube, pra bolha dele. Ele que está certo. Como que os médicos têm certeza de que foi desse vírus mesmos? O que é que essa tal de ciência tem a ver com isso? Por que ela não vai cuidar da vida dela? Quem é ciência mesmo? Nunca a vi, como posso saber se ela existe?

Quem sabe é a conta do instagram que eu sigo, ou o vídeo que publicaram nas correntes da outra rede social, muito mais informativa, acessível e pautada na veracidade.

Quem deve decidir sou eu, que nunca assisti uma aula de história direito, que dormia na aula de biologia, que gazeava a aula de geografia e que preferia jogar bola – porque era o meu destino ser o próximo nacional – do que assistir aula de português. Quem é mesmo esse tal de “português”? Só sei que ele serviu pra me gerar umas broncas, mas serventia mesmo, quando? Interpretação de texto? Gargalhadas, ok? Nunca precisei. Eu vivo no meu mundo paralelo, pouco importa saber o sentido da fala do outro. Esse outro novamente aqui, que insiste em tomar meu espaço, caramba!

Interpretação de texto é coisa de “viado”. E “Viado”, vocês sabem o destino que merecem.

– Espera aí, me dá uns minutos para eu vestir minha roupa de defensor da vida, da moral, dos bons costumes (que fique claro que são os meus, e só), beato das causas religiosas e filho de deus (que deve se orgulhar muito do meu pensamento). Terminei. Deixa-me voltar.

Eu quero comprar. Quero sair para me divertir. Viajar. Quero beber até o suficiente para assediar mulheres e depois colocar a culpa na bebida. Esfregar na cara dos outros que minha vida é melhor que a deles. Preciso humilhar alguém para que meu ego não se deteriore ainda mais – ou melhor, para que eu não veja o quão deteriorado ele é.

Queremos voltar para a normalidade.

Estado! Governantes! Me ouçam! Eis o Alecrim Dourado!

Atenciosamente, de um lacrador que necessita de likes para viver!