RETRATOS EM BRANCO - Carta aos anônimos da Covid-19

RETRATOS EM BRANCO

Vidas pausadas pelas perdas. Dilemas e dores deixam saudades nunca antes sentidas. Pessoas que o anonimato transformou em números sem história pregressa. Dramas que não foram encenados. Antes porque não faziam diferença para a mídia. Hoje porque não há palco e nem plateia. Pessoas comuns. Vitimadas pela pandemia incomum.

Roberta, 19 anos. Havia terminado o ensino médio. Recebera bolsa de estudos para universidade particular. Cursaria Direito. Tudo certo. Nada de dúvidas. Mas foi hospitalizada na manhã de uma sexta-feira. E não voltou para concretizar seus planos.

Gilson, 31 anos. Isolado da mãe por recomendação médica. Cuidava dela como podia. Compras de mercado e remédios. Mãe diabética. Filho único e dedicado. Alugou um quarto numa pensão para rapazes. O trabalho como faxineiro lhe permitia esse luxo. Na madrugada fria foi socorrido por um vizinho. A garoa fina que escorria pela vidraça do hospital era o lamento de uma mãe desamparada. Ela nunca mais o veria.

Luíza, 48 anos. Diarista. Em isolamento há dois meses. Batalhava pelo auxílio emergencial. Dois filhos pequenos e dependentes. Marido aposentado por invalidez. Na terça-feira saiu cedinho para pegar um bom lugar na fila do banco. Voltaria a tempo de preparar o almoço. Sentiu-se mal. Foi levada às pressas ao Pronto Atendimento de um posto de saúde próximo. Demorou para ser atendida. Não deu tempo de voltar para fazer o almoço daquele dia. E nem de todos os outros dias.

Marcilene, 70 anos. Aposentada. Viúva. No dia das mães recebeu uma homenagem de seus filhos. Estacionaram o carro em frente ao prédio. Cantaram e enviaram flores e chocolates. Os netos acenaram e escreveram bilhetinhos de saudade. Um dia bem feliz. E que não se repetirá mais. Na semana seguinte os filhos receberam a notícia. Estava há três dias na UTI de um Hospital de Campanha. Foi embora sem se despedir. E não voltou para casa.

Reginaldo, 52 anos. Professor. Agenda completa. Dinâmico e comprometido com seus alunos. Solteiro. As viagens eram constantes. Achava bobagem muitas histórias sobre o assunto da pandemia. Tomava todas as medidas preventivas contra a contaminação. Não dependia do Sistema Único de Saúde. Preparava uma aula por vídeo. Sentiu uma leve tontura. Abriu os olhos. Estava no hospital. Fechou-os novamente para não mais abrí-los.

Vidas em desigualdade social que o vírus nivelou.

Valorizamos a geografia dos corpos e matamos mais que um mísero virus.

Há mais mortes por violência do que pela pandemia. Mais pessoas são atingidas pela letalidade do descaso social. Mais atingidos são os pobres, mortos por exploração de um sistema capitalista.

Ansiamos por mudanças que não deixem que o silêncio dos governantes seja ambíguo.

Até quando continuaremos assim?

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 18/05/2020
Código do texto: T6951048
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