CARTA À DONA QUININHA

                                                      São Paulo, 08 de maio de 2020

Mãe, boa tarde.

     Mãe, estava indo tudo bem até que chegou aqui um vírus importado da China, aí o bicho pegou. Me lembrei logo da senhora porque me bateu uma saudade danada daqueles surtos  de gripe dos anos sessenta.

      A senhora logo providenciava um cordão com as medidas da imagem de São Sebastião e amarrava no meu pescoço, o resfriado ia embora, a gente ficava curado, mas o cordão sebento ficava grudado no pescoço por tempo indeterminado. Afinal, era promessa com o santo protetor de plantão para nos livrar da temida gripe.
     Eu até gostava quando ficava prostrado naquela rede puída, porque não precisava ir à escola ou tomar banho, bastava um asseio superficial,  lavando os pés, mãos, sovacos e rosto era o suficiente, com direito a bolachas Maria e um copo de guaraná a 40 graus ( não havia geledeira em casa).
     Eu só não gostava mesmo  é quando a senhora pincelava, usando uma pena de galinha, na minha garganta inflamada com  a banha da dita-cuja e eu ainda  tinha de encarar goela abaixo chá de flor de sabugueiro e chá de fedegoso para diminuir a febre, pois nem mesmo a febre suportava os intragáveis líquidos.
     Com a chegada do Vírus Chinês, o famigerado Coronavírus, causador da covid-19, estou de sessentena desde o mês de março. Completamente paranoico, mãe, só saio de casa mascarado e correndo a léguas do povo. Acordo com as mãos trêmulas,  desconfio que estejam com a síndrome de  abstinência alcoólica de tanto eu usar álcool em gel.
     O mais cruel, mãe, é quando surge nas coletivas de imprensa um prefeito de nome Covas, de voz cavernosa e aspecto cadavérico, falando em abrir mais covas, sem deixar de citar um ministro de olhar sinistro, sósia do Mick Jagger, falando de pandemia, epícentro, isolamento social, pico da curva e curva ascendente... Aí eu me soco debaixo da cama todo mijado.
     Ah! Antes  que eu me esqueça, mãe, agora inventaram de implantar um tal de lockdown. Quando eu souber o que diabo é isso, contarei à senhora. Tomara que não seja supositório para idoso. Deus me livre!!!!
     Vou terminando por aqui, aguardando resposta sua.
     A bênção do seu primogênito.
     Benê

Autor: Benedito Morais de Carvalho (Benê)

Livro: Pra não dizer que só falei de poesia

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