QUARTO ESCURO (TODO MUNDO TEM O SEU)
É daqui onde emanam as dores desse parto, mais um de tantos outros... Outros estes que não foram dois ou três, mas atesto que passam dos dedos de duas mãos. É a fase da "desintoxicação", assim classificada por Rodion, e como sendo a mais difícil também. E a parte boa é que contra tudo o que eu possa pensar ou imaginar, é que ela sempre passa, e que tudo ficará bem. Agora mesmo ecoam suas palavras em minha mente: "cuide do seu coração". E foi o que eu fiz.
Mas já constatei que a vida gosta de blefar comigo, e quando o assunto é o amor, ela sempre vira o jogo e blefa melhor quando penso que estou ganhando a felicidade como prêmio. Dessa vez não foi carteado, dessa vez foi algo mais estratégico, dessa vez foi um xeque mate. Mas não foram só por decepções amorosas que eu repudiava a ideia de voltar para cá, mas por muitos outros acontecimentos do passado que sinceramente, não me sinto nada confortável remexer nisso. Não só porque dói, mas porque passou e não vejo como isso pode ajudar para um bom futuro que desejo pra mim ou um possível "nós". É como foi dito: "Sentir dor e saber que há dor dentro nós mesmos é sentir dor duas vezes". Mas enfim... deixa eu abrir esta infeliz gaveta.
Finalmente meus padrinhos me deram uma trégua, e no atual momento estão me dando o espaço e o tempo que eu tanto estava precisando. No início foi bem difícil e você pôde acompanhar, apesar da estranheza, uma parte disso. Durante nosso relacionamento eu havia optado por ocultar partes mais complexas desse meu relacionamento familiar porque eu estava mais apta e entusiasmada a olhar e focar no futuro. Apostando tudo num futuro aprimorado e desistindo da ideia de ficar garimpando dores em busca de respostas que nunca vieram. Até mesmo porque depois do falecimento do pai do meu filho, a vida passou a não me dar muitas escolhas diferentes desta. Rodion me ensinou isso quando me aconselhou que não adiantaria a minha mudança de rota se eu não mudasse a forma como caminhava. Ele me aconselhava coisas que nem você mesmo colocava em prática, visto que seu passado ainda estava tão presente em você a ponto de não deixa-lo acreditar num futuro. Mas não é sobre isso que desejo abordar agora e nem aqui, nesse quarto.
Esse quarto não é um quarto qualquer... Já sofri aqui muitas outras vezes, muito mais que 1/4 de muitas outras dores... Quatro anos de depressão, ansiedade e síndrome do pânico, definharam-me aos 45 quilos e dando-me uma cor pálida carente do sol. Lamento estar aqui e pior ainda, com a forma e os motivos pelos quais adentrei nele. Quarto onde fiquei com meu filho até o primeiro mês de nascido e depois disso, do problema oculto, foi onde jurei nunca mais voltar para cá. E cá estou eu...
A parte mais irônica é pensar no quanto tive que lutar para voltar para algo, cuja a ideia, por anos me foi algo tão repugnante. Mas que por todo o atual contexto infeliz, tornou-se uma ação necessária para só então pensar em poder descansar meu corpo e minha mente, visto que minha sobrinha ainda estava morando nele. E antes fosse só esse o meu contratempo.
Depois que terminei esta batalha, comecei outra, pois meus padrinhos voltaram a me tratar como alguém omissa com meu filho, fraca com minha saúde e fracassada na minha vida. Essa parte eu já esperava, só não contava com a parte que daria o meu tão sufocado grito de independência. E desta vez sim, de forma literal com um grito, com uma voz. Com ações eu já havia feito isso há dez anos atrás, quando com minhas atitudes eu saí daqui e mostrei que não só queria, mas que podia me virar e cuidar de mim e do meu filho sem eles. Pra mim e para muitas outras pessoas isso ficou muito bem comprovado, já pra eles, não...
Acho que a quarentena ajudou nesse processo, visto que cada um já não poderia mais recorrer às suas fugas, ou seja, meu padrinho à igreja sua de todos os dias e minha madrinha aos seus médicos, que com todos os seus remédios não curam hipocondríacos. Foi numa tarde por conta de um suco que meu padrinho preparava pra mim, que o caldo entornou. Até uma vizinha que estava na hora, deu um jeito de ir embora, pois me conhecendo, sabia que eu não ia parar de colocar pra fora coisas que ela já sabia, e eles não.
Foi a primeira vez que discuti com meu padrinho. Parecia que eu soltava o nó preso em minha garganta de dez anos atrás, ao ouvi-lo me dizer que eu precisava cortar o meu "cordão umbilical" com eles. Em outras palavras, me virar com o meu filho. Nesse dia quem chorou fui eu e no dia da discussão quem chorou foi ele. Não na minha frente, mas minha irmã me contou depois. E assim passamos os dois dias seguintes sem nos falarmos nem ao menos bom dia.
A parte boa de todas as desgraças que venho vivendo é que me deixaram em paz. No início me ignoravam, me tratando como a rebelde de sempre, mas com o passar dos dias finalmente depois de anos me tratam como uma pessoa adulta e normal. Batem na porta do quarto quando querem entrar e perguntam se eu estou bem. Sem todas aquelas cobranças descabidas, em que ficavam regulando meus horários de me alimentar e de dormir, como se eu fosse uma criança que não sabe o que faz ou como uma adulta que nunca teve responsabilidades. Demorou para enxergarem o quanto há anos eu venho superando sozinha sofrimentos. E acho que dessa vez, sentem preocupação de fato por algo que é real e não mais por uma visão distorcida da minha realidade, na qual insistiram em enxergar por anos à fio.
Às vezes, antes de dormir, fecho os olhos e vejo o quarto que foi decorado para o nascimento do meu filho. Vejo cada detalhe, cada móvel... O berço, o abajour e até a cor da parede. Aliás, decorado e redecorado, pois com oito meses de gestação, houve numa noite uma grande enchente neste local que sujou e estragou muitas coisas. Lembro que com a água na altura dos meus joelhos, tive forças para ajudar a levantar a geladeira. O resto nem precisa ser dito, pois só quem passou por esse tipo de tragédia é que sabe as suas consequências e os seus estragos.
O chão cheio de lama... Nas paredes as marcas da água suja e no ar um cheiro fétido de esgoto misturado com urina. Berço, cômoda e guarda-roupas perdidos. Com quase nove meses "arregacei" as mangas e eu mesma pintei e decorei de novo o quarto. Ainda lembro das novas cores... E recentemente para piorar ainda mais as coisas que já não estavam nada boas para mim, foi justamente com a minha estadia aqui, que depois de dez anos, houve novamente uma outra enchente. Por bem pouco a água não entrou aqui dentro de casa, pois parou na entrada do portão, mas muitos infelizmente não tiveram sorte.
Desde criança sempre gostei de mexer com tintas, nessa época por diversão, e depois de adulta, mais por ser um processo terapêutico mesmo. Contudo devo admitir que pintar quartos na minha vida, acho que já esteja sendo exagerado, visto os outros três quartos que eu ainda viria ter que pintar para morar. Talvez seja por isso que eu tenha me cobrado tanto para fazer um bom trabalho em pintar o quarto da neném da minha sobrinha naquele dia. E tenha desabado a chorar ao errar a pintura, porque era algo que eu sabia fazer, mas que por estar tão exaurida fisicamente e mentalmente, eu já não estava mais tão bem e tão pouco, forte. Fator este que prolongou por mais de uma semana, um trabalho que eu terminaria tranquilamente em dois dias. Por isso eu me irritava com as suas brincadeiras, pois tentando me fazer rir e me animar, eu só conseguia sentir ainda mais a dor do meu fracasso. Fator este que só deixava cada vez mais claro para mim que o meu choro não era só por aquele caso isolado e específico.
Outra parte boa também é que às vezes lembro do meu filho recém nascido aqui comigo. Tirando claro o dia do grande susto em que sem querer ele se sufocou enquanto eu o amamentava e lamentavelmente eu peguei no sono por uma fração de segundos. Fração de segundos que tiraria o meu sono por anos da minha vida até hoje. Não gosto de recordar daquela noite... Lembro de esticar para o alto os meus braços, e erguendo-o eu gritei bem alto o seu nome, visto que estava ficando mole em meu colo. Acho que minha irmã pegou trauma em dirigir depois daquela noite, pois hoje ela não pega mais em carro. Correu como louca naquele dia em direção ao hospital, com uma criança desfalecendo no banco traseiro do carro e com uma mãe em desespero. Atravessou sinais vermelhos, buzinou para carros saírem da frente... Foi minha heroína naquele dia. O meu pesadelo? Só estava começando. Mas em outra ocasião detalho melhor este triste episódio, abordando-o em um outro tema.
Hoje ele está enorme dormindo aqui ao meu lado e passa a mão na minha cintura e me abraça. Na maioria das vezes dormimos de mãos dadas. Aquele pinguinho de gente cresceu tanto que de certa forma até me assusto com isso. Que já perdi o meu bebê e que agora estou perdendo também a minha criança.
E já sem ter lágrimas para chorar, quero finalizar todo esse conjunto de sorte e revezes vividos nesse quarto, recordando um dia mais que especial e feliz vivido nele. Foi o dia que pela primeira e também a última vez que você esteve aqui na casa dos meus padrinhos, que foi no aniversário de oito anos da minha criança. Lembro da antiga posição da cama, próximo ali da janela... Ficamos a sós e sós dormimos nos braços um do outro. Gostaria de parar por aqui, com essa cena agora em minha mente, irradiando luz aqui dentro de ambos, de mim e do quarto. Mas existem ainda estes soluços presos em meu peito... Obrigada por ter vindo naquela ocasião tão especial pra mim... E perdão... Eu sempre lamentei e ainda lamento muito de verdade, por não ter estado junto de você no seu quarto escuro, no dia em que mais precisou de mim. Uma pena que tenha sido um outro alguém a te mostrar que a vida é muito mais que um quarto escuro, quando na verdade, pensava estar sendo eu, sonhando com "casinha branca".