Carta de José Luiz Dutra de Toledo ao poeta Aricy Curvelo

Tinha perdido meu colega de redação,nos Anos 60 em Juiz de Fora,Minas(vide,aqui no Recanto das letras, "Desmoiselles")depois que casei e vivi em andanças.Quando o reencontrei,pela Internet,estava já em outro patamar do Cosmos,desde 2004.Hoje,resolvi coletar textos seus na Internet.Há três em meu Diário(blog):

http://www.clevanepessoa.net/blog.php

A carta abixo,coletei-como num jardim, a um ramo de flores, a partir de um site de busca no www.Kplus.cosmo.com.br

Coloco-a, por lamentar sempre que haja tão poucos missivistas no Brasil de hoje(aqui,um aplauso para o Patrick Flaner,de www.recantodasletras.com.br,que criou uma seção para "cartas".Aí está:

Carta ao Poeta Aricy Curvello

José Luiz Dutra de Toledo

Para um Brasil mais Brasil

Instigante, sensível e considerável escritor e amigo Aricy Curvello,

"Demócrito ria porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava porque todas lhe pareciam misérias; logo maior razão tinha Heráclito de chorar que Demócrito de rir, porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias e não há ignorância que não seja miséria." - Padre António Vieira - em seu discurso As lágrimas de Heráclito - São Paulo - Editora 34 - ano 2001 - 208 páginas - Introdução de Sônia N. Salomão - página 121.

Talvez por que você nasceu em 1945 e eu só no finzinho de 1951 algumas diferenças, ou divergências, ou descompassos ou desinências ou derivações ou dessintonias (nem sempre essenciais) nos distanciem em nossas posturas, paralelismos, "weltanchaung"s, ou mundividências, sensibilidades, histórias, memórias, identidades, buscas e rumos/ trajetórias, inspirações e transpirações. Mas, ao mesmo tempo, moraste na Avenida Senador Amaral Peixoto (em Niteróii – R. J.), avenida na qual , há décadas, entrei numa livraria e comprei um velho livro que me marcaria muito, por todo o resto da minha vida, o diria: Romain Rolland par lui même (com reproduções de obras de Picasso, fotos de Romain Rolland: da infância à velhice: e a indagação: "em qual foto/ ou idade ou fase da vida está a verdade?" seguida pela resposta do escritor francês: "em todas elas". A primeira e mais profunda reflexão sobre nossas efêmeras vidas! Mais tarde eu leria Guimarães Rosa dizendo: "A verdade não está nem no ponto de partida nem no ponto de chegada mas, sim, ao longo da caminhada, da travessia, da busca." P.S. : Romain Rolland foi amigo de Picasso, de Gorki, de Louis Aragon, de Rabindranath Tagore e de André Gide). R. Rolland escreveu o esquecido romance Jean Christophe. [comentário referente às impressões em mim causadas pela leitura da sua ótima e séria entrevista concedida ao jornal Vaia, número 8, de Abril de 2003 e editado em Porto Alegre/RS.]

Adejam-me, espreitam-me as palavras em meu cárcere linguístico e pasmo-me ante a poética idéia de que a minha língua seja a minha pátria.

Com a sua mais nova correspondência cumpriste/ realizaste muito bem o objetivo de fazer circular entre os amigos uma boa quantidade de informações sobre a sua vida e a sua criação literária. Diante do rico acervo recebido me sinto incitado a percorrer/ caminhar com antenas a olhares arqueogenealógicos sobre vários dos seus poemas a sonhos históricos.

Sobre o modernismo brasileiro (1920/1935) vejo-o tão carregado de conteúdos autoritários (stalinistas, elitistas, integralistas a europocêntricos) que opto pelas vertiginosidades oníricas e atemporais do barroco. 0 modernismo tentou fazer tabula rasa da história cultural brasileira pré-1922, me disse em Maio de 1993, em Ouro Preto-MG, na casa em que viveu Elizabeth Bishop, o embaixador Sérgio Paulo Rouanet.

Aricy, nasceste (escrevo às suas várias pessoas) nasceste - como dizia - sob o impacto mundial das explosões atômicas sobre Hiroshma a Nagazaki e, mesmo assim, bem antes do apogeu da "guerra fria" (1944/1999) a eu nasci em plena guerra da Coréia, o que talvez explique porque fui mais atingido pela propaganda anti-comunista, porque fui lacerdista e, ainda criança, tenha torcido a favor do golpe de 1964. Em 1952 fui o bebê Maizena (o mais gorducho daquele ano!) a alguns ate me incluíram na Tio Sam generation "baby-boom". Estes vestígios a marcas das nossas histórias pessoais talvez expliquem parcialmente nossas diferentes visões de mundo, mas não nos tornaram adversários um do outro. Ninguém pára o tempo, a história não é uma marcha linear, reta, uma evolução teleológica.

PARA UMA VISADA ARQUEOLÓGICA DO QUE SUBJAZ EM TORNO E NO NÚCLEO DO POEMA "ACAMPAMENTO" DO ESCRITOR ARICY CURVELLO:

Até aqui venho me remetendo às nossas trajetórias pessoais para melhor entender porque dirigimos nossas atenções a estes ou àqueles dados dos nossos perfis humanos a literários. Neste sentido entendo pertinente lembrarmos de quanto nos galvanize a tarefa do Ângelus de Paul Klee em seu apaixonado afã de em plena tormenta histórica, recolher os cacos dos processos que nos constituíram enquanto indivíduos e sociedade (uma perspectiva benjaminiana).

Um anjo sem céu mergulha nos significados das águas. Um ermo de tábuas, barracões com tetos de alumínio, cestos de cipós, raízes, igarapés meandros de rios, vapores, purgatórios, chagas, paraísos e outras escritas do metafísico feito fluxos, passagens, ausência e presença aparentemente infinita de sucessivas alternâncias entre clarões e sombras.

Nietzche (in: I filosofi preplatonici - entre as páginas 48 e 68) nos ajuda entender a poesia de Aricy Curvello e o seu eterno rio Trombetas: heraclítico, poeta de Uberlândia - MG investiga em Acampamento a verdade no orgulho, no recolhimento, na solidão diante do que passa, do que flui, do que não fica também permanece. Como o Jean Christophe de Romain Rolland diante do rio que passava no fundo da sua casa!... Aricy Curvello, como Heráclito de Éfeso acreditava/acredita "na unidade e na eterna regularidade do processo da natureza", na consideração fundamental dos eternos movimentos dos seres e das coisas (a se negarem qualquer duração ou repouso omisso no mundo delineando irregularidades intemas e desunidas, controversas neste permanente e efêmero "vir-a-ser", nesta luso-brasileira coreografia do "vira-vira" e nos redemoinhos das danças rituais às divindades indígenas e africanas. "A floresta não é Brasil", argumentam os yankees. Para nós a Amazônia é panamenha, guianense, colombiana, brasileira, boliviana, peruana, equatoriana, venezuelana ‘ até parcialmente paraguaia. Amplamente latino-americana? Questiona-se há muito o europocentrismo na expressão "América Latina". Uma extensa e quase imensa floresta, uma coleção absurda de tesouros, chagas e pragas... 0 sopro da fera divina nos provoca calafrios. 0 martírio / delírio da malária nos abate e ferocidade do ar que se antepõe à chuva nos traz os ecos de gritos desarticulados, sepultos, interrompidos e de muitos tempos. Nos chama aí a derradeira voz da luz. A pesar nos olhos, há pesar nos olhos incomodados por povoados de moscas e por rasgões e erosões destruidoras e contínuas que tudo devasta (para os lados e por trás e pela frente). "0 silêncio da manhã, nascendo em árvores" inocentes, que prosperam sem pensar no futuro. Atinge Deus não traz a necessidade de abandonar a razão? Nossas cozinhas de gorduras, de ossos... nossos embarcadouros de nada... lufadas de ventos de clorofila... galhos ceifados... e as árvores, porém, verdes e vivas...

Só temos um instante neste acampamento (quartel ou forte a ousar/ avançar contra a floresta/ labirinto e contra o sinuoso e serpenteado rio!...). Heráclito sempre a nos mostrar profeticamente: " O rio já não é mais o mesmo! E nem poderia sê-lo! Tudo passa! 0 rio também!..." No princípio era

verbo, hoje é o berro sem eco, a barbárie, o eco sem retorno, o vácuo, perdemos nossos nomes, nossos rostos ficaram opacos, tudo se dilui na voragem do tempo amazônico!...

Peixes de seda, pupunhas cruas queimando nossas mucosas bucais, o verniz oleoso dos cascos quitinosos das longevas tartarugas blindadas contra a ferocidade natural dos que as assediam... as crianças violadas ou emasculadas ao longo da trágica transa amazônica: tudo virou cinema, documentário ou espetáculo na televisãol... Os inventários já nos são impossíveisl...

Suor, calor e apetite. Em instantes imprevisíveis ruídos e brilhos, risos de Demócrito, Tales de Mileto caindo em poço profundo embriagado por um céu estrelado e cintilante, diamantes faiscando em veludos vermelhos ou azuis noturnos em trevas misteriosas e aveludadas... No outro dia, paira a terra verdesuja a suportar as nossas oficinas de barulhos, nossas marcenarias de pregos cantantes... trabalhar não devia ser uma palavra cortada / recortada da vida!...

0 que vejo não mais verei. Para trás deixarei ilhas sem mim!... Sempre um roçar de asas nos inquieta, nos alvoroça, nos leva. A morte está sempre próxima da beleza da orquídea, dos multicoloridos estandartes de peixes e de aves ou dos olhares inesquecíveis, das Iágrimas de Heráclito e dos risos de Demócrito ante as nossas efemeridadesl... Os homens (miseráveis e ignorantes) não buscam a Iuz do rio. Só querem bauxita, ferro, ouro, cobre, cassiterita, chumbo, platina e níquel. Meu salário afunda em meu crânio como um diadema de pregos, cravos e espinhos!... Tudo era verde. Acampados no provisório, num tempo sem respostas e inúteis ou fugazes bagagensl... Volver é apodrecer cadavericamente. Verde volver!... Barcos de grossos cascos e lentas marchas nos entediam prematuramente. Já sabemos o que nos aguarda no outro lado, na outra margem. Ah! Mas o rio tem muitas margens!... No tempo quase tudo é tarde, é debalde... é ampulheta caleidoscópica!... Além da paisagem os significados para as águas e as relvas pisoteadas em torno dos barracões... Andamos em círculo como "loucos" em prisões políticas.

SOB OS NOSSOS PÉS E À VOLTA DO ACAMPAMENTO A HISTÓRIA DOS AMAZÔNIDAS.

"Sobre a cabeça os aviões/ aponta contra os chapadões/ meu nariz..." (Caetano Veloso - in: Tropicália). E "barracões contra o rio". (Aricy Curvello).

Ídolos de esteatita, cerâmica de Porto Aurora, pés de trípodes, fragmentos de borda, alça sobre a boca, apliques, biomorfos de cócoras, representações do masculino e do feminino, adornos de borda e alças Konduri, tigelas ou vasos abertos, cerâmica e materiais líticos dos povos que viveram perto da atual cidade de Porto Trombetas (redescobertos nas andanças de Aricy nos anos 70 pela floresta do vale do Trombetas, noroeste paraense e, colecionados, organizados e doados à UFMG)- nem tudo achado só no sitio do Araticum (que liga Terra Santa a Saracá - base) mas também próximo do igarapé Urupanã (que deságua no lago Sapucuá), no Porto Aurora (I e 11) , em Alemã, no Faro, no Aimim, no lago Tapixaua, no lago Batata e em muitos outros sítios oleiros entre os rios Nhamundá e Trombetas (berço dos Konduri). Fragmentos, cacos, arquivos das selvas a eternizarem, guardarem os rastros e as expressões de todos os que ali nos precederam! A Amazônia não é um vácuo histórico nem uma tabula rasa.

Ciência e arte, razão e poesia, História e Contemporaneidade: eixos que moveram a serena, contemplativa, mas ávida e humanista expedição solitária e arqueológica de Aricy Curvello nas terras do início do mundo, nas paisagens inconcebíveis do desconhecido e entre vestígios de memórias e identidades que retornam ao pó da origem, ao silêncio do mistério ou ao universo sem respostas, sem nomes e continuamente devorado pelos nossos fantasiosos e fantasmáticos tempos e espaços ameaçados pelas nossas misérias e ignorâncias. Aricy, creio que, assim, tento acercar (em vários aspectos) a maioria das questões a mim propostas em sua mais recente correspondência. Abraços do seu amigo e seu leitor José Luiz Dutra de Toledo.

Sobre o autor:

José Luiz Dutra de Toledo, professor, cronista, Mestre em História pela UNESP de Franca/ Estado de São Paulo (desde 1990); Prêmio Clio - 1992 da Academia Paulistana da História; organizador da Hemeroteca e da Biblioteca da Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto/SP; ex-professor das Faculdades Barão de Mauá de Ribeirão Preto/SP, visitou em 1999 o Uruguay em busca de textos de/ e sobre Lautréamont e proferiu palestras sobre a presença homossexual na História e na Literatura Brasileiras em Lisboa e Oporto em Janeiro do ano 2000; desde 1967 colaborava com jornais, suplementos culturais, revistas de 14 estados brasileiros e com vários sites literários (internet); nascido em Tabuleiro - Minas Gerais e falecido, aos 52 anos, em 03 de julho de 2004.