Epístola Kafkiana

Em momento algum recuei ou recusei. Eu lhe disse que iria lá, acompanhado de minha maleta e de vários papéis carimbados. Pois que fiz isto, meu caro. Na verdade, sem qualquer truque tu bem sabe que não poderia fugir: Foi uma convocação cívica e obrigatória ir até lá.

Fui a repartição que estava lotada, tive de ficar em pé. Nenhum problema tenho com isso, é comum nestes lugares esperar em pé. O problema está na indiferença. Ninguém me enxergava com veracidade, eu era uma estátua que respirava. Em suma, um número entre outros milhares sem qualquer valor. Mas, como muitos outros “mas” dessa vida, Eugênio; algo aconteceu. E este algo que aconteceu, para você otimista incurável, é um fato fabuloso, e para mim sujeito taciturno é algo chato e insignificante. Minha não muito nobre pessoa, eis agora um funcionário. Um funcionário público e para dor de meu coração, ainda se adiciona uma palavra à essas duas. A palavra Gegé é... Soem as trombetas... Repartição. Euzinho funcionário público de repartição... Um burocrata. Ah, é o fim de minha liberdade.

Serei o supervisor do supervisor, sendo supervisionado por um sujeito falatrão que pensa ser divertido. Você sabe quem é ele. Relembre daquele homem ruivo que na passagem de ano, sem nenhum motivo que saibamos nos atacou com chopp no rosto e ovos podres nas costas. Pois é ele Gegé, o Homem. Que como um deus esta literalmente acima de mim: O escritório dele fica exatamente acima do meu, separados por uma laje, portanto quando estou em minha cadeira com olhos perdidos em meio há arquivos, o Homem esta pisando na minha cabeça.

Retirando este “esmagamento de crânio” o trabalho é decente, divertido. Trabalho no órgão de censura e estou tendo acesso à diversas obras artísticas que considero boas, revolucionárias, que particularmente adoro, mas que carimbo com tinta vermelha dizendo: Impedido. As raras exceções Eugênio são reescritas, por minha senhoria. Basicamente retiro o polêmico e adiciono o que sempre dá certo. Quer um exemplo? Lhe digo; todos os finais são felizes, seja no cinema, teatro ou telenovelas. Morte, violência, transgressão são artigos que não mas existem e todas as estórias são simples e humildes, sem nenhum luxo como o povo quer ver.

No princípio adorava fazer isto. Você bem sabe que desde a infância sempre tive uma veia literária. Agora, no presente nenhuma satisfação tenho disto. Descobri que é feio bodar o trabalho dos outros. Estou mais que blasé sobre isso. Pensava fingir uma doença para não mas ir trabalhar. Mas justamente na semana que faria o feito, ouvi uns camaradas dizer; que um tal de Joseph K. ou Gregor Samsa tinha feito o mesmo e que foi descoberto e passou a ser perseguido pelo Estado. Sem que ele, nem ninguém soubesse o porque de toda a perseguição, pois que a única coisa que os agentes lhe alegavam era que nenhum motivo de acusação tinha de haver com a falácia doentia. Por conta disso Gegé, abortei meu Grande Plano. Tu sabe que necessito ter controle sobre minha vida... Imagine eu perseguido e preso, sem saber qual é a acusação sob mim.

Então, ainda estou no trabalho, que não quis e que me deram. Fico vivendo em meio a pura monotomia, alienando o povo com textos água com açúcar. ATENÇÃO! Às palavras que lerá a seguir Eugênio, foram escritas muitos dias após as escritas acima. O Homem disse que há uma forma de eu abandonar a burocracia sem sofrer um processo de desligamento estatal, que será acanhado como uma pulga à burocracia e roubará meu sangue, que mesmo depois de meu falecimento, não terá sido concluído. A forma de minha alforria ser dada, eis por meio de uma missão. Tenho que me infiltrar nos salões das Artes, descobrir quem são e como são todos os artistas. Depois disto tenho que atuar, e em suma virar uma espécie de mestre ou guru. Onde todos os artistas tenham que à mim recorrer para que possam trabalhar. Pois eu serei a fonte de sua criatividade. Desta maneira segundo o Homem, Gegé, eu ficarei sabendo quem além de ser censurado deve ser interditado e impedido eternamente de ser um artista, e assim facilitarei o trabalho da Censura Burocrata. Também meu amigo, terei de ser seu líder e mestre de todos os artistas, pois que serei um missionário que tem por objetivo transformar, purificar, misticamente todos eles... Não se atreva Eugênio à dizer que isto é uma missão impossível e o Homem é um louco. O Homem atualmente é um bom homem, e minha missão não é algo aterrorizante, eis apenas martirizante. Afinal, nunca foi testada essa atividade para se ter certeza se é boa ou má. Portanto Gegé á alguma sorte ao meu lado. Eu apenas tenho de me manter longe dos mecenas à margem da lei para que não arrisque minha vida e alma, que já foram arrendadas pelo Estado.

Torça por mim meu amigo, esse é o único jeito de me livrar desse sistema estatal maluco. Também torça para que ninguém leia isto, afinal tu é um artista, fiel ao Estado nunca censurado, em resumo, uma ovelha ao lado do pastor maquiavélico. Mas ainda sim é um artista. E nenhum de nós deseja ter problemas com a censura.

Até o breve futuro, Eugênio Ritzstein. Seu sempre caro amigo, Lion Von Victoria.

Helena de La Dauphin
Enviado por Helena de La Dauphin em 25/03/2020
Código do texto: T6896740
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