Carta a Emília V - Vera Cruz
Naqueles anos de grande obra quinhentista, só tínhamos certezas.
Portugal ou vai para o mar ou a Espanha nos engana ou nos esgana, nem “Aqui D’El Rei”, nem nada.
“Como ser grande sem antes ser pequeno”? Sei lá, e as lições lusitanas que já ninguém ouve…
Dava-se notícia de que ía comitiva dos grandes almirantes, uns para o caminho da Índia, outros para a América ou África, grande parte, para nosso lamento, ficava no mar. Ficavam a flutuar naquela morte atlântica que só serviu para dois vinténs de vida.
Vinha gente de todo o lado. A notícia chegava a Espanha e França mais rápido que a peste e a fome.
Todos queríamos embarcar para o Novo Mundo.
Era chegada a hora de subir a bordo.
A última pergunta em terra firme: Ó, rapaz, estás doente?
-Não, mestre, nem dos dentes nem das barrigas.
-Sabes o que acontece se ficares doente na nau, na comitiva de El Rei?
-Sei, mestre…
-Não sabes nada, insolente do catano! Vais borda fora!
-Próximo. Ó, rapazote, estás doente?
-Não, mestre, nem dos dentes nem das pernas.
-Sabes o que acontece se ficares doente na nau, na comitiva de El Rei?
-Sei, mestre…
-Não sabes nada, insolente do carvalho! Vais borda fora! Agora vais buscar-me vinho que me doi a garganta de falar tanto! Anda ou ficas em terra!
E cuspiu com um assobio lisboeta.
Assim era a saída para a nova vida ou morte certa.
A segunda semana no mar, um mar sem fim à vista, ensinou-nos que seríamos todos marinheiros, contramestres, médicos e padres. Irmãos.
Todos nós cumprimos aquelas pequenas regras, regras de uma pequena nau, de uma pequena vida, mas no coração da nossa Pátria. Na coragem de todos.
Chegamos a Vera Cruz.