Carta a Pablo Crocodilo
"Carta a Pablo Crocodilo,
de Ceres, de Ventania
"Amado Pablo Crocodilo, tua Ceres, eternamente tua, pois não sabes?! Como tu eternamente meu. Não sou deus nem deusa só te criei personagem. E personagem sou. Ai, essa coisa de artista poeta sim, falo do povo da linguagem, seres esquisitos da palavra - lavras. Como conta Liria Porto palavra é bicho doido, pode salvar, pode matar. Ouço-te dizer-me: Caminhe sobre essa ponte flutuante. Pois caminho. Sabe a Líria? lembra dela? Minha conterrânea de verdade, ela mora agora em Araxá, sim Líria bem dita, nascida e criada em Ventania, tal que nem eu. Líria como Capricórnio me dita cartas, e me ensina a meditar. Sim, e faz ioga, faço junto com ela, e faço ioga sozinha, faz bem fazer. E enquanto medito meu amado, as imagens que vivo são de ti. Meu bem amado Pablo Crocodilo. Amo teu nome na minha boca, amo teus lábios delirantes, cheios de lírios, lábios de delírios.
Quando teve o inverno em Ventania, tu te lembras?! Líria querida junto com tia Zica e outros mais, você sabe, foi quem me ajudou cuidar de Daniel, o menino adormecido que deixaste comigo, quando me encontraste na estrada justo na entrada do trem do metrô, lembras?! Sim, eu passava na catraca para entrar na linha amarela, lembras?! Ia eu pra casa. Entrava eu e tu saías, e justo nessa passagem tu partindo e eu chegando, tu me entregastes o menino. Coisa mais linda o menino adormecido, cílios longos, pele cor de canela, andava ele pelos cinco ou seis, talvez uns oito, né?!
Ai Pablo meu amor adorado, naqueles instantes amei-te e odiei-te. Por que não ficastes?! O menino adormecido é teu filho?! Pois bem há muito tempo é meu também. Eu o criei. E Daniel acordou, e hoje é homem feito. Não parece contigo nem comigo, não parece com ninguém, é Daniel. E amado por Hugo Bonito e por Efigienia, pelo Coronel Orestes Rabello e pela Rosa, por Olga do Lago, e pelo Luca, o Velho da Caverna,e tantos outros, Ai meu amor Pablo Crocodilo. Sim, meu amado Pablo, achei teus livros de poemas, os desnudos, e os do inferno, ai meu deus, andavam eles esquecidos num canto da estante que ficou oculto, até Líria vir comigo para ficar uns dias, e me perguntou se podia arrumar as estantes e tirar o pó, e organizar os livros, tantos livros, e eu deixei e agradeci. E de repente como uma brisa, um sopro de vento, me passou teus livros, quanta emoção. Naquela noite dormi com eles abraçados em meu peito como te abraçando, e só senti amor, quanta saudade! Nunca mais te vi, se se passaram trinta anos! Nosso deus o Uno interferiu? Pedir não pedi e nem rezei, se trabalhar é um jeito de rezar sim, trabalho muito. Lido com palavras e com tintas, e às vezes costuro uns trapos, criando roupas. Só coisas que visto, sou feminina, e gosto de sair bem ajambrada, e me desculpa falar que te odiei. Nas arrumações de Líria achei um caderno velho, onde tem uns fragmentos com minha letra, Ceres, eu mesma. Nossa, Virgem, e tem as datas. Quase
não acredito acreditando. E não é que nas arrumações de Líria ela também achou dois livros dela, Cadela Prateada e Garimpo, e livros da Sylvia Loeb, livros de Silvia Anspach, da Ethel Battikha, da Maria Luiza Persicano, de Sergio Zlotnik, de Paschoal Motta, Sergio Teles, e muitos outros. Ah, Uno, deus amado, obrigada! Eólio com quem converso na serra da Bocaina me prometeu te entregar a carta. Mas com certeza não me dará seu endereço, porque você vive de partir. E eu vivo de chegar. Pois sou terra. E você, um viageiro."
* Eliane Accioly Fonseca