Sobre os Dízimos

CARTA SOBRE DÍZIMO

Oi, Enos. Ao contrário dos meus planejamentos, não vai dar para nos encontrarmos para batermos aquele papo sobre dízimo que você queria, precisei adiar minha viagem. Meu menino de sete meses ficou resfriado (pela primeira vez na vidinha dele) e não acho bom viajar com ele nessas condições. Então decidi escrever essa pequena carta para lidar com questões que você levantou:

1. Pesquise um pouco sobre a prática do dízimo ao longo da história da Igreja Cristã. Isso vai ampliar um pouco o teu horizonte para além das questões bíblico-teológicas. Sugiro que comece pelo uso do dízimo como imposto na Idade Média; eu tenho um pequeno artigo sobre isso que não sei exatamente onde está, mas quando achar vou passá-lo para você.

2. O dízimo praticado nas igrejas evangélicas hoje não é o dízimo da Bíblia. O dízimo na Bíblia geralmente era de alimentos, dado anualmente, e não era apenas 10%, mas 20 ou 30 por ano.

3. O dízimo é uma forma de reconhecer um sacerdócio. Quando Abraão deu dízimos a Melquisedeque, ele estava se submetendo ao seu sacerdócio. Como não estamos mais sob o sacerdócio levítico, não estamos mais obrigados a obedecer o mandamento dos dízimos da Lei, pois tais estavam intimamente ligados aos levitas. Isso não significa que o dízimo foi necessariamente abolido, porque estamos sob o sacerdócio de Melquisedeque, conforme Hebreus, e ele também recebeu dízimo. Mas este era bem diferente do dízimo dos levitas, diferente de Malaquias 3, com outras motivações. Por isso, no Novo Testamento, a prática da Igreja não era dar 10% mensais ou anuais do seu ganho, mas ofertas voluntárias. Assim, usar o dízimo de Abraão a Melquisedeque (Gênesis 14) para assegurar que os cristãos são obrigados a dizimar hoje em dia é simplesmente ridículo. Este foi dado uma única vez, e não de sua renda pessoal, mas dos espólios que havia tomado dos inimigos.

4. No Antigo Testamento, os dízimos serviam para sustentar as festas anuais e alimentar os levitas e os necessitados. Assim, aplicando aos nossos dias, podemos usá-los para sustentar os necessitados, pagar o salário daqueles que se dedicam ao ministério do Evangelho e financiar as demais atividades da Igreja. Não é para enriquecer pastor.

5. Muitos pregadores da prosperidade usam do dízimo para construir uma teologia de semente: a contribuição que você dá na Igreja funciona como uma semente que vai frutificar e será devolvido a você na forma de prosperidade financeira. Seu grande erro é que a nossa recompensa por quaisquer boas obras que praticamos é principalmente celestial, não terrena. Seria uma maldade de Deus se ele fizesse assim, pois Cristo disse: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam.” (Mt 6.19-20)

6. Essa distorção que a teologia da prosperidade faz é uma forma de feitiçaria, a tentativa de usar um objeto material (no caso, o dinheiro) para manipular a Divindade de forma quase mística.

7. Aquele que ameaça os crentes com uma maldição por não darem o dízimo negam o Evangelho, pois “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós” (Gl 3.13).

8. Por outro lado, é perfeitamente bíblico atribuir aos crentes as bênçãos da Lei, pois Cristo também morreu “para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo” (Gl 3.14).

9. O Senhor castiga aqueles que Ele ama (Hb 12.6), de modo que é totalmente condizente com o Seu amor e a Sua graça punir, mesmo com dificuldades financeiras, aqueles que são gananciosos e não usam seus bens a favor do Reino de Deus.

10. Quando Jesus fala sobre dar dízimos em Mateus 23.23, Ele está falando na Lei a homens da Lei, de modo que é muito difícil usar essa passagem como prova do dízimo na nova aliança. Além disso, esse dízimo de que Jesus está falando era especificamente de produtos da terra, diferente do praticado atualmente.

11. Hebreus 7.5 diz categoricamente que os dízimos sob a lei deveriam ser dados especificamente pelos descendentes físicos de Abraão e somente para os levitas. Portanto, precisamos ser cautelosos ao aplicar versículos do AT que falam sobre dízimos aos não-judeus.

12. Se uma das funções do dízimo é o sustento dos necessitados, os muito pobres não são obrigados a dizimar. Ninguém deve tirar do pão de sua família para entregar na Igreja.

13. Aquele que tenta ser justo através da pratica dos dízimos está obrigado a cumprir toda a lei (Gl 3.10-11). Se não o fizer, mesmo que dê os dízimos exatamente como a lei ordena, estará debaixo de maldição.

14. Se o dízimo não é obrigatório, a diferença entre dízimo e oferta pode ser abolida. O dízimo cristão é uma oferta.

15. As necessidades básicas da nossa família têm precedência sobre os dízimos (Mc 7.9-13).

16. Todos os crentes são sacerdotes. Assim, é perfeitamente natural que um cristão tome pessoalmente as decisões relacionadas a onde será aplicada a parte da sua renda destinada ao Reino de Deus. Desse modo, não há problema nenhum em alguém, ao invés de dar o dízimo diretamente na igreja local em que frequenta, doar para uma obra missionária ou para uma instituição social. Por outro lado, temos uma dívida especial com a igreja local que frequentamos, de modo que devemos priorizá-la no uso de bens financeiros para Cristo.

17. Se praticamos uma forma de dízimo hoje, ele não deve ser um fardo sobre nós, mas um deleite; pois Cristo não nos chamou para nos oprimir, mas para descansarmos Nele.

Outras questões importantes podem ser discutidas, mas penso que esses pontos são suficiente para adiantarmos nossa conversa. Espero poder estar com você em breve. Lembre-se que dependemos inteiramente do Espírito Santo, da boa palavra de Deus e dos poderes do mundo porvir para prosseguirmos na caminhada cristã. Nosso próprio esforço é inútil sem Ele. Você prossegue no amadurecimento conforme abandona a justiça própria, aceita a justiça de Cristo e tal justiça se torna mais e mais eficaz para produzir santificação em você. Tenha isso em mente quando pensar e praticar (ou não) a doação do dízimo.