Carta aos navegantes
A cena que se descreve a seguir pode ser vista no penúltimo capítulo da (4.º) temporada de "Outlander" disponível no canal Fox Premium.
Por engano, um sogro espanca seu genro ao confundi-lo com outro, que violentara a filha. O genro ensanguentado e desorientado é vendido pela família de sua esposa, como escravo, a uma tribo indígena, que o colocará à prova e levará às últimas consequências seu senso de lealdade à mulher amada de quem se desviou. Seu tempo entre os índios, o levará ao encontro de outro prisioneiro, este prestes a ser condenado a uma morte lenta, pena que terá de pagar por se negar a batizar uma criança. Este prisioneiro era até pouco tempo, um padre, agora em um intenso conflito de consciência, dividido entre os votos de fé quebrados por um amor contraído que se encontrava ali mesmo. Fazendo um fruto desse amor, a mesma criança que ele se recusa a batizar por entender que já não era mais padre, desde o momento em que amou (e ainda ama) aquela mulher, tanto quanto devotara sua vida a Deus até encontrá-la. Em seu coração ele havia falhado com Deus, acreditando cegamente que merecia sofrer o castigo que estava prestes a encarar. Essencialmente seu conflito interno exigia a convicção de que deixara de ser padre e que por ter se tornado um homem comum, não era mais digno de conduzir o batismo daquela criança. Sua última boa ação, ajudar seu confidente e confessor que desejava escapar da tribo para reencontrar sua amada.
Então deixam tudo pronto para a fuga, e essa era a ideia. Porem, enquanto corria para a liberdade, o homem ora livre, ouvia o padre agonizar pela dor de ser cozinhado vivo, lentamente, por uma imensa fogueira abaixo de um monte de pedras que tocam seus pés trazendo-lhe dor excruciante, a qual levará pelo menos três dias para consumar sua morte. Todos assistem seu sacrifício em silêncio. Próxima ao padre uma índia segura seu filho. A ambiguidade aqui é adequada, visto que a criança é filha do padre com a índia. Que o assiste em lágrimas, de um modo que só Deus pode descrever, literalmente. Mesmo um cego, seria capaz de entender como aquele fogo também estava queimando a alma daquela senhora. Não muito longe, aquele homem que tentava fugir de fim semelhante, não suporta os gritos do padre. Retorna, e para encurtar a pena, atira em direção ao ex sacerdote um objeto que faz com que a estrutura se desfaça e o fogo se alastre, reduzindo para menos de 30min um suplício estimado em três dias. Neste instante, aquela índia, que de alguma maneira também estava sendo consumida pelas chamas, gentilmente conduz a criança em seu colo até o chão, a salvo. Serenamente segue um passo de cada vez, até o que ainda restava do padre, o abraça firme em meio aquele fogo e não larga mais. Sendo consumida pelo fogo real, quiçá agora menos doloroso que aquele de alguns instantes atrás. Assim fez as chamas, consumindo ao padre e sua amada.
A que nível de transcendência o amor pode levar um ser humano? Pode ser tênue a linha que separa o amar em paz da mais extrema loucura, tão tênue que é preciso pisar nos dois extremos para que seja possível ter alguma consciência dessa fronteira existencial? Renunciar a si mesmo e literalmente queimar e ser luz enquanto sofre a combustão. Uma luz silenciosa, serena, reservada, tão breve quanto intensa. Tal como estrelas que ainda podem ser vistas no céu, muito além de seu tempo e espaço. Colocar o EU em eutanásia, lançar-se ao abismo de si mesmo, perceber a dimensão infinita do próprio vazio existencial e nessa mesma medida descobrir a grandeza que se pode ter em se desfazer de todas as vaidades, de todos os apegos. Ver que a queda irreversível é também um voo em direção à verdade de cada um. Em verdade, aliás, o calvário íntimo leva também à ressurreição e encontro do que importa: o melhor de si. Guardado dentro de nós, onde ninguém pode violar e só pela coragem heroica de amar nos é permitido conhecer.