Memórias de meu avô
Não sei bem o motivo, mas atualmente – e mais que o normal – tenho pensado em meu avô, que morreu já há bastante tempo, talvez mais que dez anos. Ele foi um homem bruto, forte, de pele bem morena e olhos verdes cor de esmeralda que pareciam faiscar sob a luz certa. O senhor Antônio Ferreira da Silva vinha de uma época e de uma cultura onde os homens não aceitavam questionamentos porque deviam ser fortes e duros no comando da família.
Ele teve uma vida muito interessante, cheia de mulheres, de filhos, de aventuras – muitas violentas – que dariam um livro. Ele viajou, trapaceou, traiu, amou, lutou, trabalhou, perdeu e ganhou, tudo com muita intensidade e paixão, ao estilo dos homens antigos.
Ficou viúvo três vezes e encarou isso com a resignação dos homens fortes, que encaram a vida e seus desafios com ferocidade, como se fosse da natureza da existência dobrar os homens e como se fosse da natureza dos homens não se deixar dobrar. Para ele era como se a vida fosse um bicho, cujo instinto era esse: trazer dificuldades, trazer dor e miséria, e que ele, bom caçador que era, estivesse preparado e jamais se abalasse.
- Eu atiro muito bem! - disse-me ele um dia, já quando veio morar conosco depois de perder uma perna e de ter a fala prejudicada por um AVC. Continuava orgulhoso, era forte e bonito, mesmo quando a doença lhe arrancou um pedaço do corpo e sempre, sempre mesmo, era um galanteador inveterado.
Um AVC final tirou dele tudo que restava; almoçou, mas não se sentia bem. Passou mal e foi levado ao hospital, de certa forma, ainda consciente, mas já era tarde. Não piscava, não falava mais e os olhos de esmeralda mudaram para um verde claro, como o do vidro.
Por muitas vezes eu tinha visto meu avô sair de situações onde eu duvidava que ele saísse e, dessa vez, quando tive certeza de que ele se recuperaria, não houve volta.
Lembro-me muito bem que derramei uma lágrima, somente uma, no dia de sua morte e não sei exatamente o porquê. Partia-me mais o coração ir em seu quarto, agora escuro, e observar todas as coisas que ele gostava. O pacote de biscoitos recheados, ainda pela metade, o copo d'água cheio e não tocado, todas as roupas, tão bem dobradas na gaveta, o rádio desligado (quem teria coragem de ligá-lo um dia?).
Para mim, foi como se meu avô tivesse sido subtraído de um quadro e, para onde quer que eu olhasse, sempre haveria algo faltando. A morte de meu avô, aquele homem que parecia criação de um autor de livros de aventura, me fez pensar na morte de todos nós, em como é triste, num belo dia de domingo, simplesmente deixar de Ser e todos os nossos objetos, todos aqueles que amamos, tudo o que somos, vira uma subtração ou uma inutilidade.
Quando o enterraram, mais tarde no outro dia, também não sei o porquê, pude dar ao meu avô as lágrimas que ele realmente merecia.