Querido, nós não estamos na literatura

Duas semanas viajando me rendeu uma caixa de mensagens lotada e um e-mail abarrotado de coisas para serem resolvidas. Te confesso que gosto da agitação e de ter o que fazer, mas eram tantas coisas para serem lidas e despachadas, que me perguntei mentalmente se minha viagem repentina para o Peru tinha valido a pena.

Jamais praguejaria com o Peru, eu amo o Peru. Mas os e-mails sobre os freelances que eu precisava entregar, sobre as boletas do Nubank e sobre meu trânsito astrológico estavam começando a me irritar. Fora minha caixa postal do celular. Tirando as chamadas do meu pai que insista em me pedir para ligar para ele, mesmo que ele soubesse que eu estava ilhada no Peru, a única que me chamou a atenção foi a tua. Eu não reconheci o número, mas quando sua voz invadiu o fone eu tinha a certeza de quem era. Você suspirou pausadamente, e disse que estava torcendo para eu ainda morar na mesma casa pois tinha enviado um livro para mim, mas como eu não tinha entrado em contato ainda você estava preocupado. Me pediu para checar o correio. E bom, eu tinha chegado há um dia e meio, e embora estivesse curiosa, fui dar atenção para isso cinco dias depois quando o carteiro me entregou uma caixa amarelada imensa. No remetente, o seu nome. A chamada na caixa postal e seu rosto invadiram minha mente na hora.

O que será que me aguardava?

O livro era 1984. George Orwell não era meu escritor favorito, mas eu gostava dos livros dele - embora não tivesse nenhum exemplar dele na minha estante. Me perguntei mentalmente porque diabos você insistira em me mandar um autor estrangeiro, sendo que você sabia que eu amava os autores brasileiros. Para a minha surpresa, a resposta para minha pergunta muda escorreu do livro. Em uma dedicatória extensa e feita por uma caneta tinteiro, você detalhou bem os motivos de eu estar com aquele livro em mãos e porque Orwell ao invés de Machado ou Cortela.

Perdidos por entre as páginas, havia uma passagem que te marcara profundamente. Você ressaltara que a forma como Orwell descreveu a situação, era igualzinha ao que você passara comigo pelos os meses que estivemos juntos. Muito surpresa e curiosa, me perguntei do que você poderia estar falando. Eu demorei a achar a página por conta da minha vida corrida, mas quando eu li aquelas frases eu tinha a certeza de que eram delas que você estava falando. Como sempre, era mais do mesmo. Um casal que enfim fica junto, e o cara parece nem acreditar que o fato estava acontecendo. O desenrolar da história, todo mundo sabe. O livro era bom, a história era bem amarrada e coordenada. Valeu a literatura. Era uma pena, que na nossa história, nos dois não valemos.

Foi nisso que eu pensei enquanto te escrevia um e-mail falando do que eu achara da leitura. Ninguém poderá saber o que teria sido daquilo que não foi, mas não precisamos dar um pulo no futuro para saber que teríamos dominado o mundo se tivéssemos ficado juntos. Teríamos. Mas não vamos mais. Nosso amor valeu a leitura do livro do Orwell, mas não o suficiente para entrar na literatura. Fomos rebaixados a nível de romance ficcional e nossa história foi parar em bancas de jornais. Todo mundo já leu, mas ninguém se lembra. Nem mesmo nós.

Porque se você se lembrasse mesmo, querido, saberia que esse livro do Orwell, quem te deu... foi eu.

Mariana Almeida
Enviado por Mariana Almeida em 14/07/2019
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