Carta a Alguém

Itabira, quatro de julho de 2019.

Carta a Alguém,

Oi, quanto tempo! Saudade.

Quando você se foi deixou um enorme vazio, eu era apenas uma jovem de 22 anos, com a promessa de uma vida inteira para descobrir. Recém-formada em Psicologia, muitos sonhos e tantas promessas...

Vivemos seis meses de realizações e você ao meu lado todo o tempo, ajudando a montar o consultório com seus objetos de decoração e eu me aventurando pelo prédio do Nagib, subindo e descendo uma escada louca que você não mais arriscava. Você alimentava meu sonho, sonhava comigo. Vestia-me de terninhos e jabô que eu usava para te agradar.

O tempo passou... De uma forma esquisita, pois eu contava os minutos, os meses e anos e ainda conto. A promessa de uma vida toda se encurtou, quarenta oito anos.

Você se foi tão de repente que nos assustou, não tínhamos certeza do que se passava e simplesmente em uma noite de inverno você nos deixou, no meio de um papo sobre relacionamentos afetivos, seus últimos conselhos.

Não pode esperar mais uns dias, eu faria 23 anos 23 dias depois.

Tudo tão triste, tão rápido, tão real, tão vazio!

No instante seguinte nos víamos sós, e imediatamente chamamos o pelotão de ajuda, a Espiritualidade Maior, sem ela não teríamos resistido. Fomos fortes.

Como você foi e é importante em minha formação, como aprendi com você. Muitas vezes foi bem dura comigo, exigia de mim uma perfeição que eu não conseguia acompanhar, mas me fortalecia a cada etapa, parece que de alguma forma todos sabíamos que sua estada conosco seria breve e você tinha pressa para que eu aprendesse tudo. Do livro de etiqueta aos livros de Chico Xavier, do espiritismo à culinária, da física ao crochê, do capricho ao arrumar as gavetas à empatia e amizade.

Quantos mimos! Da maquiagem importada aos berloques de jade que eu tanto adorava e adoro, os tenho até hoje comigo.

Você se horrorizava com as carrancas que eu admirava, mas as buscava pra mim no rio São Francisco, pensava em mim quando via alguma coruja e me presenteava com as mais lindas para a decoração. Realizava meus desejos, minhas vontades, fazia as comidinhas que eu mais gostava e me esperava chegar de Lorena sempre com gostosuras.

Você não quis que eu fosse para o Rio estudar arqueologia, história, fez de tudo para que eu permanecesse por perto, acertou, encontrei minha vocação que você sempre conheceu, fui fazer psicologia mais perto de casa, Lorena, estado de SP, na divisa com MG. Toda quinta nos falávamos ao telefone e na sexta eu corria de volta para casa, ficar bem pertinho de você. Ficávamos juntas o dia todo, eu nem gostava de sair à noite com as amigas, parece que adivinhando que deveria ficar o mais próximo possível, o quanto pudesse, pois seria curto o tempo ao seu lado.

Vivemos muita coisa juntas. Devo a você a mulher que sou hoje, e sei que algumas das minhas melhores qualidades vieram também e principalmente de você, força, dignidade e fé.

Você me ensinou a lutar, luto até hoje.

Mesmo ausente fisicamente você se fez e se faz presente, nos momentos mais difíceis me mandou sinais que eu atenta soube perceber. Sou grata.

Hoje, em alguns momentos, olho para trás, o suficiente para me lembrar de quem eu fui e quem eu sou.

Trinta e seis anos se passaram, muita coisa vivi, são duas fases distintas e distantes, pareço outra pessoa, sou outra pessoa e todas com a mesma face. Sua filha.

O mundo mudou. Eu mudei.

Meu amor por você não mudou, cresceu me encorajou e me fortalece. O amor curou a ferida enorme que ficou.

Deus foi e é maior. Dou graças a ele, pois, a fez ir rapidamente, o último suspiro ao fechar os olhos e pronto lá estava você no céu, no nosso céu.

Obrigada mãe por tudo o que me proporcionou pelo que me tornou, pela vida que me deu e por ter me escolhido para crescer em seu ventre. Se hoje estou ainda por aqui é por você.

Costumo brincar e digo como o vovô dizia, estou vivendo de gorjeta, pois você se foi aos quarenta e oito anos e eu já passei dessa idade.

Nunca deixei de contar os dias e minutos, mas ao mesmo tempo mantenho o sorriso fácil e farto que herdei dos pais amados, o otimismo, a empatia, a fé que renovo a cada manhã.

Saúdo o sol que nasce todo dia, reverencio a Deus e uso a prece de Caritas que você me ensinou.

Minha braveza e rigor nas escolhas também são seus. Tanta coisa.

Fisicamente me pareço com você que até eu me surpreendo com alguns lances, penso em você.

Impossível conter as lágrimas ao escrever essa carta, mas você sabe que é de gratidão e alegria por você existir em mim. Elevo meu pensamento a Jesus e à Espiritualidade Maior, são meus guias nessa jornada. Peço-lhes que continuem a te guardar, proteger, abençoar.

Um beijo mãezinha querida, sei que um dia, junto ao Pai nos reuniremos, aguardo ansiosa por esse encontro, no seu colo me colocarei e buscarei o alívio para essa ausência tão prolongada.

Cuide-se bem. Amo-te para sempre,

Sua filha primogênita,

Syl