Quando o tempo parou
15 de junho de 2018. Acordei feliz. Um dia inspirador. Vi o sol ainda laranja no horizonte por trás da fumaça do coador de café na janela da minha nova casa. Um projeto de anos. Foi maravilhosa aquela manhã.
Fim de semestre, notas no sistema, e adivinha? Tudo ok. Notas suficientes. Foi um semestre tão difícil, tanta coisa para resolver ao mesmo tempo. E enfim, havia fechado aquele ciclo.
Contente que estava, postei uma foto no instagram com uma legenda dizendo o quanto a vida é bonita só de existir. E ao final tinha a frase: "A única coisa que desejo agora é que tudo continue assim. É pretensioso, eu sei. Mas esse desejo define o sentimento que as palavras não conseguirão precisar."
Eu não sabia, porém, que poderia ser a última coisa minha que as pessoas leriam.
Naquela tarde, voltando pra casa, animada, feliz, pilotando minha moto, um carro atravessou a avenida que eu passava sem olhar pro lado.
Sou boa pilota. Sei desviar, sei cair, sei desacelerar. Não tenho modéstia quanto a isso. O que vou descrever aconteceu em 2 segundos: ao perceber a negligência do carro buzinei e tentei frear. Sem sucesso. Consegui desviar, e por uma fração de segundo me senti livre do perigo. Neste mesmo segundo escutei o baque seco e oco. O plástico batendo no ferro maciço num estrondo violento. Quando abri o olho que nem lembro de ter fechado, estava ao chão. A visão retangular de dentro do capacete só me mostrava um chão frio de paralelepípedos. Nenhuma pessoa à vista. Meu . corpo . não . respondeu . ao . comando . pra . levantar. Foi a segunda coisa mais assustadora que me aconteceu na vida. Abri os olhos - novamente sem lembrar de tê-los fechado - e vi duas mulheres do outro lado da rua. - Aí, não consigo ficar olhando. Imaginei que minha situação era grave. Sem me ouvir, gritei. Gritei, novamente. Dessa vez me ouvi. Não que fosse inteligível qualquer coisa que eu tenha dito, mas devo ter gritado: socorro. Ouvir minha voz foi maravilhoso. E aí então, meu corpo que ainda não sentia dor ou qualquer coisa que fosse, foi retomando a consciência. Senti frio. Minhas costas aparadas na guia do canteiro central. Percebi que minha cabeça estava no chão e meu braço torcido pra trás, e nesse instante começou o formigamento na mão. Todo o resto eu não sentia. Finalmente, depois de segundos que foram elevados a números infinitos, um senhor chegou, gentilmente e me perguntou: você me ouve? sabe onde está? Não lembro se respondi pra ele, mas soube dar respostas a mim mesma. A partir disso tremi feito uma britadeira. E tremi as pernas. E foi maravilhoso. Tudo que já li e vi na vida me sopraram ao ouvido pra não me levantar, pois tinha batido a coluna. E ali permaneci com apoio de várias pessoas que se materializaram a minha volta. Uma mulher me ofereceu o telefone, perguntou se eu conseguia falar. Lembrei o telefone da Amanda. Exitei por um momento em avisá-la. Mas com aquela quantidade de gente em volta, sem saber qual minha real situação - não conseguia ver meu braço, se todos os membros estavam no lugar, se tinha sangue- e sabendo a febre que as pessoas tem de jogar situações como essas em redes sociais, achei melhor avisá-la o quanto antes. A mulher gentilmente a avisou. E ali permaneci esperando. Estava muito frio e eu tremia como nunca na vida. Finalmente, chegou o resgate. Eu nem conhecia uma ambulância por dentro. Mesmo com todas as minhas artes nunca quebrei um dedo sequer. E ali estava, aguardando ansiosa pela ambulância. Muita gente, médicos, polícia. Imobilização da cervical, perguntas. O que dói?- passei um scanner interno, e percebi que meu braço formigava, mas minhas costas era o que me preocupava. A dificuldade me imobilizar foi grande. Colocar a maca entre a guia e meu corpo em decúbito lateral sem que eu pudesse ajudar. Várias pessoas gentis ajudaram. Amanda chegou e me vendo ali, imobilizada numa maca perto de um poste caiu aos prantos de joelho. Fiquei sem reação.Tentei da melhor forma possível dizer que estava bem. De forma lúcida pedi pra ligar para meu irmão e meus pais, além de avisar minha dupla do plantão o que tinha acontecido. Na ambulância permaneci por mais 20 minutos segundo me disseram. Eu mesma tive a impressão de ter ficado horas lá. Por conta do frio foi muito difícil encontrar veia para medicação. Imobilizou-se meu braço e fomos em uma longa caravana até o pronto socorro.
A partir disso o tempo voltou ao normal. Sabia que não corria risco de vida. Uma cirurgia de emergência foi necessária, pois meu punho quebrou em 7 pedaços. Mas depois do resultado dos testes clínicos e raio-x que disseram que minha coluna não foi afetada parei de tremer. Sucedeu-se a isso chagada dos meus pais, internação, cirurgia, pós-operatório, ida para casa, e meses de recuperação.
Tudo foi muito difícil, mas ter a certeza de que as pessoas que amam estavam comigo fez tudo muito suave. Fui cuidada da forma mais afável que se poderia imaginar.
Mas ainda carrego o susto comigo. Me mostrou a morte não manda aviso de despejo. Não dá prazo. Não fica olhando se você tá bem ou mal no momento. Se você fez o que tinha fazer. Se você está de plantão. Ela acontece, assim como acontece a vida. Me fez perceber, que essa história de só temos o hoje é verdade. Me ensinou de uma forma dolorosa que a vida é muito mais que boas notas e contas pagas. Que a vida transita por uma linha muito fina. O equilíbrio entre todas as coisas é muito tênue e o que movimenta a dá urgência a vida é o caos.