Missiva a um amigo das terras gerais
Ao meu caro amigo que encontra seu desterro em meio a capital;
Saudoso amigo, queria gritar, fazer passar um turbilhão de vento pela estreita laringe, levar até a ti, em som de desespero, as ondas sonoras de minha pobre existência, no entanto a distância impede meu choro de encontrar abrigo em tua morada, que por tantas vezes me foi alento, quando nos encontrávamos próximos, menos pela distância e mais pelo sofrer compartilhado de duas almas amarguradas: sofrer que ganhava forma de canções, poemas e redondilhas em nossas vozes já cansadas pelo amargor do fumo e do café.
Como sabes bem, somos do povo, homens populares, em seu sentido pretérito, pertencemos a massa viva informe: não temos bens, dinheiro muito menos e a felicidade nos abandonou. O que me resta é deitar estas palavras mortas sobre o papel e endereçar-lhe este cemitério, leia como, se a ti, eu tocasse com as mãos leves que nunca conheceram o trabalho do homem popular, minhas mãos foram feitas para dor – não a dor material de um trabalhador da indústria ou do campo– existencial e metafísica.
Talvez, pareça-te que essa característica me distinga do nosso povo e faça-me menos povo como tu o concebes por tal. Quiçá, estejas correto; contudo, se do trabalho de calejadas mãos me abstenho, na imaterialidade do substantivo popular me sujo. Como sabes o mundo em sua objetividade pouco me importa, já que espero à morte como quem espera à vida, a liberdade e o retorno a minha condição de nada; pois ser me doí muito e prefiro prostrar-me, em frente ao que é, como um ser que o despreza.
Tu deves lembrar-te de nossas tardes sentados à mesa, fazendo elucubrações e deduções sobre literatura, mitologia e ciências naturais, esta que nos unia fortuitamente. O café nos despertava de um cansaço sorumbático de viver e as palavras descarrilhavam-se em tons exaltados e vivos. A saudade desses tempos pesa-me, ilustre amigo. Algumas vezes, desfrutávamos de canções e elas nos embalavam por horas, conduzindo as discussões sem fim.
A fim de confirmar a minha pertença ao nosso povo – e cabe-lhe pensar a tua– início, finalmente, minha missiva – se quiseres, dispensa os primeiros parágrafos que são lembranças vis– com homem que, talvez por sua condição, mais soube lamentar de forma popular as lágrimas de nós brasileiros, o pobre Cartola:
“Nada consigo fazer
Quando a saudade aperta
Foge-me a inspiração
Sinto a alma deserta
Um vazio se faz em meu peito
E de fato eu sinto
Em meu peito um vazio
Me faltando as tuas carícias
As noites são longas
E eu sinto mais frio”
Destaco dois termos: alma deserta e saudade. Termos que me enchem de um sentimento que procuro decifrar enquanto a ti escrevo e que nos cabem tão bem pela distância hercúlea de nossa separação. Vês que escrevo mais por mim do que por ti, esquálido amigo, busco, ao escrever-lhe, decifrar algo que, neste momento, parece-me indecifrável, sendo assim nada lhe vale gastar-te no presente escrito, já que escrevo palavras narcísicas e se te encontrares em algum lugar cabe, somente, a ti decidir assim.
O primeiro termo traz o substantivo alma determinado pelo adjetivo deserta, que se deriva do substantivo deserto. Sendo assim, pode-se comparar o adjetivo ao substantivo que lhe dá origem. Contudo, mergulhemos, um pouco mais, na etimologia da palavra: no latim, temos o substantivo desertum que remete à ideia de solidão e o adjetivo desertus que entre seus significados encontra-se abandonado, inculto, selvagem: ambos têm sua origem no verbo desero, originalmente utilizado na linguagem militar, que podemos traduzir por desertar, abandonar e deixar. Em sua origem belicosa, pode-se encontrar o que melhor elucida a concepção atual do termo: Luta! Guerreia! Ergue teus gládios e hastas, entraremos no campo de Marte, onde, abandonados, lutamos contra a própria vida.
Tu me falas em “peito duído e amarrado”, com teu jeito oswaldiano que me lembra o teu gosto por usar com sapiência a linguagem popular, o que me faz estabelecer esse paralelo entre o “duído” e o deserto, se, em sua raiz etimológica, este nos apresenta o sentido de abandonar ou perder – o que é uma característica dos homens mortais –, ele, indiretamente, nos leva à dor; pois poucos têm o privilégio de regozijar-se com esta ingrata. Somos filhos da falta, algo nos foi retirado, somos castrados, nascemos e já somos mutilados.
A origem do verbo latino foi transmutada para dar sentido a um ambiente inóspito, árido, em que a vida rasteja e busca superar a dor de raspar a barriga contra o chão. Sendo assim, lhe pergunto onde está o deserto? Ou mais abrasileirado, onde está o sertão?
Guimarães Rosa responde peremptoriamente: “O sertão está em todo lugar”. O sertão é o universo e vivemos embebidos nele. Podemos vencê-lo? Não, pois ele é nossa falta; e nossa falta faz-nos homens. Como então nos portamos em frente ao sertão? Munidos de ansiedade e dúvida, já que nosso sertão nos abandonou e nos engoliu acabando com toda certeza que tínhamos há pouco (Deus, também, abandonou seus filhos).
O deserto é aquele tudo que era para ter sido, mas não foi. Acompanhe as aventuras de Riobaldo, nelas podemos entender como a vida em sua luta subjetiva contra o sertão se dá. Se nada se pode esperar do deserto, criemos nós– ó criaturas divinais– então, nossa própria imagem dessa paisagem, na qual, além do chão seco material, projetamos nossa própria secura a fim de encontramos água no chão árido, assim como esperamos nascer da pedra o joio. E a ansiedade de saciarmos a sede que temos nos frustra, pois sempre que dirigimos a boca ao líquido, ele corre e foge-nos, nos restando eternamente a sede e a necessidade, irrealizável, de pô-la fim.
Como, então, combater esse sertão sem começo e nem fim? Se o sertão está em todo lugar, ele pode estar em nós também? Talvez, para os estoicos, sim; principalmente, para o mais ingrato deles, Sêneca: torna-se sertão é acabar com o próprio sertão, ou seja, abandonar o que a nós abandonou, somente assim vencê-lo-emos. E como podemos assim proceder? Me reporto, novamente, ao “sofista” latino, aceitando que a única completude que nos resta, já que o nascer nos jogou no incompleto, é a Morte, escrevo-a com maiúscula, pois a personifico. Tenho-lhe como persona, como ser, como Deus, nada me faz pensar ao contrário, ela é a entidade que é mais material do que o próprio ser que tende a lhe personificar, ela se faz e desfaz o sujeito de seu fazer.
Se aceitamos o fim como o retorno ao completo, negamos, assim, o incompleto, já que a fantasmagórica Morte é uma incerteza, virá de trem? De bala? Acidente? Ou do definhamento do corpo? Não sabemos; sabe-se que ela virá incontestável e, até mesmo, caroável: não nos restará, portanto, a ansiedade, pois a certeza da sua chegada – e não seu meio – nos trará o descompromisso com o efêmero e com o sertão, já que este nada importa para nossa velha amiga: a Morte, superemos, assim, o sertão.
Caro amigo, sabes como admiro nosso Rosa, por vezes tenho lhe falado dele e o bem que fez ao nosso idioma e ao nosso povo. Riobaldo – como gosto desse nome– tinha-se pleno apenas nos momentos em que as peixeiras tilintavam no campo de batalha; pois estas eram os sinaleiros da morte que se aproximava, mesmo que nunca lhe chegou, logo quando os trabucos se silenciavam e ele se encontrava, novamente, jogado na falta, o sertão lhe tornava a paisagem seca de antes, como se perdesse seu mana vital– como são doces as guerras, amigo paupérrimo.
Não tentemos, metafisicamente, cercar o sertão, mas, sobre sua materialidade torpe, negá-lo por meio de nossa própria secura, já que ele também nos faz, não havendo mais diferença entre nós, somo uno, por isso não se pode distingui-los, carecendo ambos de definição por não mais se fazerem antítese. Ó brilhante amigo, a Morte nos ronda.
Isso, talvez, tenha observado o velho Sêneca e com mais profundidade o bigodudo Nietzsche; no entanto, ninguém entendeu tão bem o homem como o engravatado Rosa. Não vou me estender mais nesse termo, apesar de faltar-me muito para explicá-lo.
Passemos, agora, ao segundo: saudade. Saudade, um substantivo abstrato que pede um complemento nominal – saudade de que? – tem origem, no latim, no substantivo solitudo, entre seus significados, destaco: abandono, sem proteção, falta etc. Observe a aproximação semântica entre os dois termos deserto e saudade. Do que temos saudade? Justamente, da proteção que tínhamos, do não abandono; é o que nos levou a criar Deus ou mesmo os deuses – lembra-te do pai e seu famoso intérprete, Freud.
O que nos protege desse abandono, além de Deus? O passado; pois, em nossa mente, este se apresenta como uma completude que era e não mais é. Esquecemos, no entanto, que ele se apresenta assim, pois ele, agora, é imaginário, ou seja, não ser. Então, somente, podemos sentir saudade do não ser, do não e inexistente. Só que esse não ser é o metro do que está para ser e esperamos sentir essa falsa completude novamente no porvir e sua falta causa-nos males. Já que ela é, acima tudo, a nossa condição humana.
O que nos resta então? Esperar retornar a completude, não mais a colocando no passado, mas sim esperando que ela venha sobre seu gélido cavalo nos buscar do futuro. Não importa como a Morte virá, importa que ela virá, acabemos, assim, com a ansiedade que não é uma incerteza do futuro, por outro lado, ela é, sim, o passado que nega morrer. “Há esperança, mas não para nós”, já que quando nossas esperanças se concretizarem não estaremos mais entre os mortais, assim o ser humano é o bicho da esperança, a falta lhe faz esperar o seu retorno a não esperança, onde não precise esperar ingenuamente algo.
Novamente, esperança, saudade e o sertão confundem-se. O que nos resta? VIVER, condenados à vida, mas não martirizados por ela; pois ela terá seu fim. Oxalá, não somo imortais. Ao abandonar o reino das esperanças, abandonamos, juntamente, o reinado da angústia. Nada espere, plácido amigo; quem nada possui, nada teme a perder. Sejamos o nada.
Desculpe a confusa resposta a sua belíssima missiva anterior, desculpe pelas confusas interpretações filosóficas e literárias, como disse sou um homem do povo, temo não encontrar o que já não é temor; encontro apenas um vazio deixado por esta folha que não me permiti explanar tudo e com todos os significados desejados o meu pranto, pranto de abandonar à vida, sendo este o único modo que encontrei para continuar vivo- ainda tenho muito a dizer sobre o tema— e perdão pela morbidez das palavras que se arrastam em um “peito vazio”.