Carta sobre as mulheres no cinema de Walt Disney

CARTA SOBRE AS MULHERES NO CINEMA DE WALT DISNEY
Miguel Carqueija

O texto abaixo foi escrito em agosto de 1993 e enviado à sessão de cartas do jornal “O Globo” do Rio de Janeiro. Não recordo se foi publicado.

“Quero protestar contra o artigo “Todas as mulheres de Disney”, de Sidney Garambone (O Globo, 15/8/93). Trata-se de um amontoado de sandices a começar pela afirmação de que “Branca de Neve é uma musa ultrapassada” quando na verdade se trata de uma criação imortal do grande Walt Disney. Logo no primeiro parágrafo, demonstrando a falta de elevação de seu estilo, diz o sr. Garambone que “a estética asséptica de W.D. está indo para a cucuia”. Não satisfeito observa que Yasmine, em “Aladim”, recusava pretendentes impostos pelo pai e que “dormiu na casa do futuro namorado”. Quem lê isto, sem ter visto o filme, pensa até que houve uma cópula. Acontece que “A pequena sereia”, “A bela e a fera” e “Aladim” são projetos deixados por Walt Disney, como outros (“A canção de Hiawata”, “Don Quixote”, “Fantasia continuada”) que ainda estão para vir à luz. E Yasmine é uma personagem conservadora, não uma libertina mas uma mulher de espírito romântico, que luta pelo seu direito de casar com quem lhe inspira amor. Quem fala em “abismo de erotismo” pensando em fita tão inocente, não enxerga o lixo em que se transformou o moderno cinema norte-americano.
A opinião de Georgina Wortmann também é absurda. Ariel não vendeu sua alma ao diabo, personagem que não aparece em “A pequena sereia”. Aurora, a Bela Adormecida, possui uma personalidade marcante e é sedutora ao seu modo, passeando descalça no bosque e brincando com os animaizinhos; Cinderela, apesar da servidão em que vivia, defende o seu direito de ir ao baile real; Branca de Neve adapta-se a uma situação de exílio sem cair em depressão, revelando grande força de caráter.
Não há nada de errado na ternura a qual se refere Lucas Rodrigues. Quanto à passividade, não é bem assim; é preciso ver que estamos diante de contos de fadas, aperfeiçoados pelo “mago da tela”, sim, mas cada qual possui um contexto, uma situação peculiar a ser respeitada. Cinderela era humilde, mas digna e pura, e o desenho de Disney é uma obra-prima na acepção da palavra.
O decote de Yasmine, referido por Luisa Thiré, é outra bobagem. Está dentro do contexto social-geográfico do filme. E se fosse uma havaiana?
Voltando ao jornalista, dizer que Aurora “nunca estudou na PUC mas vivia presa na floresta à espera de um príncipe encantado” é querer demais de uma menina que fôra crada pelas tias-fadas segregada para escapar da maldição da roca de fiar e estava apenas completando 16 anos! Cinderela é produção de 1950, não de 1949, e não terá sido arbitrária a citação de Nelson Rodrigues? Ele talvez gostasse de Branca de Neve.
E afinal, outras heroínas poderiam ser lembradas: Alice, uma menina curiosa e inquieta, que pessoalmente investiga uma terra estranha; Wendy, que acompanha Peter Pan na expedição à Terra do Nunca; Pollyanna, que, criança embora, transforma a vida de toda uma cidade; e a incrível Mary Poppins, que com seus poderes mágicos benéficos salva um “importante homem de negócios” da sua própria mesquinhez. “Mary Poppins” é de 1964, Walt Disney supervisionou pessoalmente. Alguém a chamará de personagem passiva?"

(imagem pixabay, a Disneylândia de Paris)